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UM VIDRO SOB MINHA PELE

Entrevista com Moara Passoni.

 

Cynthia Farias*

O filme “Um vidro sob minha pele”, idealizado e dirigido por Moara Passoni, nasce principalmente de seu encontro com a obra de Marguerite Duras cujas ressonâncias tocaram em uma experiência até então sem palavras: a anorexia vivida dos 12 aos 18 anos. A colaboração como pesquisadora para um documentário sobre a relação das adolescentes com seus corpos foi também disparadora do desejo de filmar sua experiência de anorexia. A anorexia abordada a partir das angústias da adolescência, trazendo um olhar voltado para a obsessão pelo corpo, pela cirurgia plástica, pela perfeição, não contemplava seu ponto de vista sobre a questão. No fim de uma manhã de domingo, conversamos durante um par de horas sobre o filme e sua experiência.

O nome

 

O nome “anorexia” dizia muito pouco para mim durante minha experiência de anorexia. Ela tinha muitas outras facetas e o não comer era apenas uma delas. Eu organizava meus dias em horas litúrgicas, horas precisas para fazer as coisas, rituais precisos. A minha obsessão não era ficar magra. Minha obsessão era o negativo. Ficar cada vez menor. O que me interessava era chegar ao osso que de alguma forma é a estrutura mais definida de um corpo. Uma de minhas obsessões era ir aos museus de anatomia. Perguntava-me como é que as ideias se produziam nos corpos. Como se produz vida nesse negócio que é tão misturado, tão caótico que para entendê-lo é preciso dissecá-lo, separá-lo? Na anorexia, a comida tem que ser separada, e o pavor da gordura é porque ela confunde, mistura. Chegar ao osso é chegar ao que há de mais “puro”, mais claro no corpo.

Passei a usar o nome “anorexia” depois que eu sai daquele estado, como uma forma de dizer para as pessoas o que eu havia vivido. Havia uma impossibilidade de comunicar o que eu sentia para os outros, como se não tivessem ouvidos capazes de ouvir o que eu havia vivido.

O belo

 

A anorexia tem a ver com o belo, com o que entendemos do belo. Mas é muito redutor dizer que alguém se torna anoréxica para ficar bela. De onde vem essa força para manter o controle da fome por anos? Eu acho muito arriscado reduzir a anorexia a uma busca por um padrão de beleza. 

A conexão entre o ideal contemporâneo de beleza e a experiência da anorexia é, sem dúvida, uma questão que tem de ser colocada. Não acho que isso se conecta como causa e efeito, mas considero que sejam duas faces, talvez, de um mesmo fenômeno. A questão que fica é: O que está gerando a anorexia e esse padrão de beleza?  

Por outro lado, a anorexia é uma experiência extremamente estética, visual, virtual. É como se, dentro daquele estado, toda a complexidade das coisas do mundo estivesse posta em sua superfície. O lugar do filme que estamos fazendo é aquele da pele. Onde as coisas se dão a ver.

Num certo sentido, acho que a anorexia tem muito mais a dizer sobre nossa civilização do que sobre minha relação com minha mãe e com meu pai.

O filme

 

O que me levou a fazer esse filme foi a vontade de adentrar essa experiência. Percebi que havia alguma coisa da anorexia que eu não conseguia dar conta, que permanecia quase inacessível para mim. Foi quando encontrei um amigo, Maurício Ayer, que na época fazia um doutorado sobre Marguerite Duras. A experiência da anorexia que eu vivi e que eu tentava formular sem saber direito como, começou a tomar forma a partir de meu contato com a obra de Duras, em especial com sua constatação de que o mundo caminha à sua perda, à sua destruição. Isso ressoou demais com a experiência da anorexia, porque para mim é como se a anorexia fosse um espelho trágico do mundo, seja pela razão instrumental, seja pela ideia do controle, pela ideia de chegar à perfeição, seja pelo ascetismo. Com Marguerite Duras eu comecei a pensar a experiência da anorexia para além do que eu tinha vivido. Como essa experiência se conecta com nosso mundo? Era preciso incluir nessa experiência, o sistema de objetos que a envolve; o eu e o outro, a sociedade. O filme é a minha história que se cruza com a história de tantas outras meninas, por meio de seus diários, de minhas pesquisas, de diários publicados e de relatos de mulheres que colaboraram com o filme. Beatriz é uma personagem que permite pensar que a anorexia não é um sofrimento individual, mas transindividual.  

A redescoberta de meus escritos da adolescência fez com que a anorexia vivida dos 12 aos 18 anos se tornasse um enigma para mim. Marguerite Duras diz que a loucura e a inteligência são estados que quando você está dentro você não sabe reconhecer. Eu acho que estou fazendo esse filme para tentar desvendar esse estado da anorexia. Eu uso o cinema para acessar a experiência de um corpo anoréxico. Não sobre o que causou a anorexia, mas sobre o que dessa experiência se abre como visão de mundo, como uma determinada experiência do mundo. É uma tentativa de produzir um filme que não fale sobre a anorexia, mas que permita ao expectador entrever o que é o mundo sob aquela perspectiva. Não se trata de fazer um filme sobre anorexia, mas um filme anoréxico, que retire da anorexia os instrumentos para a construção de sua linguagem.

Negativar o corpo

 

O prazer na experiência da anorexia é raramente falado. Eu tive muita dificuldade de encontrar tratamentos que levassem isso em conta. “Se você não comer, você vai morrer”, é o que se costuma ouvir. A morte está presente, você sabe desse risco, mas ela não significa. A morte é externa à experiência da anorexia. Não se trata de um querer-morrer, em absoluto. Se trata de uma intensificação total da vida. Você está muito próxima da morte mas seus sentidos estão completamente vivos. O corpo vai se definhando numa experiência de puro êxtase causado, seja pelo jejum que produz um estado alterado de consciência,  seja pela proximidade da morte. Enfim, todos os sentidos ficam muito intensos. Esse estado é quase um gozo, um prazer imenso. Todo seu corpo está extremamente vivo em termos de adrenalina. Por isso é

tão difícil sair da anorexia. Tem um lado da experiência em que você se sente senhora de si, tem uma sensação de autonomia total, de onipotência. Então, a anorexia é muito poderosa nesse sentido, ao mesmo tempo em que há um enorme empobrecimento devido ao fechamento em relação ao outro.

Para mim,a anorexia não é uma dor, mas uma resposta a uma dor anterior, talvez. Ela se mostra sempre em duas faces extremas de um mesmo fenômeno. Ao mesmo tempo em que você está destruindo seu corpo. você está vivendo ele em sua máxima intensidade.

Não dá para olhar isso separadamente. Você pode interpretá-la como uma aniquilação do corpo, mas ao mesmo tempo em que você está aniquilando, você está construindo um corpo extremamente potente. O controle total do desejo leva à irrupção do desejo. É muito louco ouvir dizer que não há desejo na anoréxica. Tudo o que tem nesse corpo é desejo, mas de outro jeito.

A experiência da anorexia é quase fascista

 

A anorexia em algum grau para mim foi uma experiência da loucura da razão. A crença na razão é tão forte como se ela fosse responder todas as perguntas e fosse capaz de substituir o corpo. Você vai transformando seu corpo numa ideia e acha que pode fazer isso. Você está totalmente acima de seu corpo e passa a tratá-lo como estrangeiro podendo fazer dele o que quiser. Tal era meu domínio sobre meu corpo que fiz dele minha maior alteridade. Você é o mentor de todo aquele projeto de controle, rigor, ascese, e ao mesmo tempo é o sujeito, submetido àquilo. É o prazer do poder sobre o próprio corpo e você usa a razão como um instrumento de execução disso. Nesse sentido, é uma experiência quase fascista.

 

Positivar a experiência

 

Eu só consegui sair da anorexia quando comecei a positivar essa experiência no sentido de entender o que eu estava vivendo, e o que eu queria buscar com aquilo. Isso aconteceu a partir do encontro com uma psiquiatra-psicanalista que foi fundamental para mim. Na época, eu tinha uns 15 ou 16 anos e eu não falava a meu respeito. Além da escola, fui entrando num claustro e passava todo o tempo em meu quarto estudando. Minha intimidade havia sido totalmente sufocada, implodida. O alimento exercia sobre mim fascínio e repulsa ao mesmo tempo. Eu sabia que estava vivendo um processo intenso, mas não sabia falar sobre ele.

Ela nunca falou comigo sobre comer ou não comer. Nós começamos a ler livros. O primeiro foi Alice no País das Maravilhas. Depois, alguns livros de Elias Canetti, um sobre a invenção do tempo, outro sobre a invenção das leis. Lemos também Ayla, a filha das cavernas de Jean M. Auel, um romance histórico sobre uma menina que vivia isolada em sua comunidade. Foi muito impressionante porque na leitura desses livros as situações foram sendo postas para mim. Com isso, ela começou a quebrar minha subjetividade rompendo com a convicção que eu tinha sobre aquele estado. Eu não me lembro de ter falado sobre o que eu comia ou não comia, sobre se eu queria emagrecer, perguntas que os médicos fazem via de regra. Eles te encaminham para a nutricionista, mas você sabe muito mais do que ela sobre os alimentos. Afinal, o alimento é sua obsessão. Ao contrário disso tudo, essa psicanalista foi por um caminho nada óbvio.

Até um dia que, sonambulamente, levantei da cama e quando me dei conta eu estava devorando a geladeira. A partir daí eu saí daquele estado de anorexia e entrei num estado de conflito profundo com meu corpo, com minha fome, com meu desejo. Foi a primeira vez que eu senti dor. A anorexia virou um embate enorme, como se o controle que eu impunha, a busca pela perfeição, a certeza, a onipotência, o êxtase que eu vivia na anorexia, tivessem sido quebrados. Quanto mais eu tentava controlar o corpo, mais eu falhava. E isso me produzia uma angústia enorme. Aquele estado de equilíbrio que eu havia alcançado nos primeiros anos de vida havia sido quebrado. Eu sentia fome, desejo, e meu corpo não respondia mais. Sair da anorexia é aprender a viver com os outros de novo. Foi uma aprendizagem, cheia de duelos, pois o outro, claro, não responde às suas vontades.

 

O sexual

 

Para mim há um hiato entre os meus 12 e 18 anos. Tive uma experiência com a sexualidade na infância que foi muito intensa. Eu me lembro dessa experiência muito viva em mim. Fui sempre muito conectada com meu corpo. 

Quando comecei a virar mulher, a menstruar, a ter peito e bunda, comecei a ter pavor daquele corpo. Comecei também a ter um pavor com relação ao desejo, uma mistura entre desejo e culpa muito forte. O que fazer com o desejo no corpo principalmente quando você começa a perceber que esse corpo provoca desejo nos outros? Ser objeto desse desejo pode ser muito assustador.

Porém, não acho que a anorexia tenha sido uma resposta a isso. Acho que essa é uma experiência universal, que acontece com todo mundo. Eu não vejo uma relação direta de causa e efeito.

A primeira vez que eu experimentei não comer, comecei a ter uma concentração incrível e aos poucos desenvolvi uma obsessão pelos cálculos, pela física, pela lógica. Achava isso fascinante e estudava muito. A questão é que na anorexia você começa a viver o desejo de forma muito mais intensa, numa busca pela transcendência. Eliminar meu corpo para chegar à perfeição dos números, dos cálculos racionais, das formas e da geometria. Tudo na minha vida virou cálculo: o alimento, meu corpo. Tudo eu entendia a partir dos números: as calorias que ingeria, que gastava, as medidas do corpo, a notas na escola etc. 

Na anorexia eu tive uma sensação muito forte de estar perdendo a pele. Eu não tinha mais noção do limite do meu corpo, mas não entendo isso como dismorfofobia. Na experiência da anorexia você vai deliberadamente contra o limite, vai expandindo, implodindo os limites do corpo a ponto de sentir que os espaços é que dão limite ao seu corpo. Como eu vivia enfurnada em meu quarto que virou um claustro, era como se aquele quarto fosse meu corpo. Então, na saída da anorexia a questão sexual foi fundamental, porque, quando o outro te toca, você começa a entender onde termina seu corpo e onde começa o corpo do outro. Desenhar esse corpo foi fundamental.

 

Causas

 

Buscar as causas da anorexia sempre me moveu muito pouco.

A partir do momento que comecei a terapia, a ler os livros e que acordei devorando a geladeira, meu corpo deixou de obedecer ao meu controle. O registro da transcendência deixou de fazer sentido para mim. Então pensei: “se eu não for para a dimensão da imanência, de que as coisas estão no meu corpo, se eu não começar a viver meu corpo eu não vou criar corpo nunca”. Lembro-me, durante o lento processo de saída da anorexia, da dor que era estar dentro do meu corpo, da solidão brutal, muito mais intensa do que a que eu vivia na anorexia. Eu me perguntava: e agora, como vou dar conta de habitar esse corpo? 

Foi um conflito imenso. Passo a viver tudo no corpo numa abertura radical. Tudo o que era feito para reduzir o corpo a um conceito durante a anorexia tornou-se experimentação desse corpo, na intensidade da entrega. Aí entram todas as coisas que são corporais e que estão fora desse controle. Quando o desejo irrompeu com a potência de desejo e não de outra forma, eu precisei colocar esse corpo no mundo.


Brasília, cidade anoréxica

 

Há, para mim, de alguma forma, certa conexão entre meu corpo infantil e a experiência da anorexia. Decidimos, então, filmar os lugares onde a experiência desse corpo infantil foi se tramando. Passei parte de minha infância em Brasília;a vivência nos interstícios do poder, a experiência da tensão política e a vulnerabilidade do corpo infantil em meio aos conflitos da política têm, para mim, conexão com a experiência da anorexia. 

Olhar Brasília é como olhar o corpo anoréxico. Embora seja extremamente sensual e lúdica, como se fosse composta de peças-móbiles e você pudesse montar a arquitetura na sua cabeça, Brasília é uma cidade voltada para a potência extrema da função. Eu tive uma experiência de Brasília como um espaço desértico de silêncio e murmurinhos,de grandes segredos, de sempre algo se tramando. Eu estava ali, pequena, tentando desvendar o que estava acontecendo. As linhas duras do concreto contrastadas com a fluidez das nuvens do céu, é uma coisa que nos fascinou desde o início.

Eu lembro que eu tinha um olhar de muito nojo e muito fascínio em relação aos outros corpos. A gordura polui, cria indefinição nas formas do corpo. Num certo sentido isso tem a ver com Brasília, porque em Brasília, as formas são extremamente precisas, extremamente desenhadas. Como a gente diz no filme: “É o prazer brutal da forma até que esse prazer implique o mais puro e cruel da solidão”.

 

O olhar

 

Tomamos o partido, num primeiro momento, de não mostrar o corpo anoréxico. Esse corpo anoréxico é espetacular demais. Quando você olha para ele, imediatamente qualquer pensamento ou experiência sobre ele é eliminada. Porque ele fascina. E a anoréxica sabe o quanto ele captura o olhar do outro e joga com isso. De um lado, você tem o espetáculo, o uso desse corpo que acaba servindo de fetiche, causando fascínio. De outro lado, ele parece ofuscar elementos nevrálgicos da experiência da anorexia.

Desde a entrada de Martha Kiss Perrone no filme, começamos a criar outras possibilidades para apreender esse corpo. Afinal, tudo está no corpo.

Enfim, vamos mostrar o corpo, mas a questão é: como mostrá-lo? 

 

Anorexia e o feminino

 

A anorexia é um fenômeno maciçamente feminino, embora venha crescendo entre os homens. Talvez sempre tenha existido e agora deixou de ser tabu os homens falarem a respeito. 

Claro que me perguntei muitas vezes... mas acho que não consigo intuir respostas sobre essa pergunta.

 

Anorexia e escrita

 

“Um vidro sob minha pele” era a sensação que eu tinha quando eu estava dentro da anorexia. Eu tinha a experiência de escrever em contra fluxo com meu corpo. O corpo quase não dava conta do que ele estava vivendo, então eu ia para a escrita e essa escrita me devolvia para o corpo. Era uma escrita compulsiva e extremamente necessária, porque ia desenhando a experiência desse corpo. Num desses diários tinha essa frase. Voltar a esses diários me fez redescobrir essa experiência. 

Engraçado, é uma memória que vai se revelando aos poucos. A cada vez ela se revela num sentido, num fato. Não é algo que se dá a ver assim... 

 

Tempo

 

Dos meus 12 anos aos 18 anos eu tive uma experiência que é quase sem tempo. O gozo de parar o tempo é muito forte na anorexia. De alguma forma você vai destruindo o tempo. Você não menstrua mais, não come, não defeca; seus dias são divididos em horas que se repetem dia após dia, sob regras precisas. Como um monge ou um atleta olímpico em treinamento. Estas ações aos poucos se transformam em rituais. Quanto mais você mergulha nesse ritmo, mais você deixa de sentir o tempo passar. Por outro lado, como diz minha amiga Petra Costa, "você virou música". Minha sensação era de que os dias eram todos iguais. Eu ia sacralizando e ritualizando o cotidiano e criando para mim uma certa dimensão do sacrifício. Além disso, é como se você tivesse eliminado a narrativa. Para mim é uma experiência de seis anos quase sem tempo e que permanece ali. Nesse sentido, ela é quase mítica. Ela está fora do tempo, mas não cessa de produzir sentidos, significados.

Quando decido fazer o filme, a primeira grande questão que se coloca é: como a gente cria uma narrativa para uma experiência em cujo cerne está a eliminação da narrativa? Uma experiência que elimina o tempo? Como fazer um filme de algo que elimina o tempo? Um filme é tempo. Narrativa é tempo.

Então de alguma forma, fazer o filme é criar um tempo para essa experiência. Isso implode a experiência, fazendo, inclusive com que eu possa me elaborar ao longo desse processo.

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