Não sem efeitos, tal como indagava Lacan[1], "do que temos medo? De nosso corpo, e é precisamente o que manifesta o fenômeno da angústia". Assim, esse “vazio sinistro que há em tudo enquanto se espera que o coração entenda”, como escrevia Clarice Lispector, quebra uma das crenças mais fundamentais de que somos donos do nosso próprio corpo. A realidade corpórea não se reduz, nem ao organismo, nem ao júbilo narcísico da imagem de si que, frágil, inexoravelmente antecipa sua própria derrota. O corpo do qual padecia a histérica no palco de Charcot, e que abriu a via ao inconsciente para Freud, ilustra a dificuldade que implica ter um corpo, quando a histérica essencialmente o recusa.
E, ainda, ao “mistério do corpo falante” – tema inclusive que servirá de via para tratar do inconsciente no século XXI, conforme o título que convoca a Associação Mundial de Psicanálise para o seu próximo Congresso – não deixaremos de agregar, em que pese a revolução das mulheres na cultura e o feminismo que rechaça a alteridade do “feminino”, a locução “de mulher”, para adentrar o dark continent freudiano e, mais e ainda, abrir com Lacan, no litoral, essa Caixa de Pandora.
Se A mulher não existe, segundo o aforismo lacaniano, como cada uma enfrenta o mistério do indizível do feminino para dar consistência corpórea à sua existência nos tempos do declínio do amor ao pai e do próprio binarismo homem/mulher que, efetivamente, encontra-se desmantelado na nossa civilização?
A arte contemporânea rasgou o véu da beleza que outrora dava forma e unidade à imagem ideal do corpo, colocando a céu aberto os objetos extraídos do corpo como restos que, com o cheiro do ralo, subiram à cena. Quais os sintomas que a psicanálise recolhe na época em que são os Corpos que importam, os corpos aos quais finalmente nos reduzimos? Na pele, a inscrição de tatuagens, os cortes e a pouca costura nem sempre reúnem as peças soltas para compor um mosaico de um corpo que se sustente no mundo.
Por fim, se uma mulher ainda pode encarnar o Outro sexo e ser Outra, inclusive para si mesma, escapando às identificações, ao império das imagens, aos imperativos de beleza, ao corpo tiranizado da pornografia e aos ideais da ciência, o gozo feminino, entretanto, distante da pontuação fálica, pode arrastar qualquer uma, lá onde o sujeito não mais se encontra, na experiência de um corpo Outro extraviado de si mesmo, onde uma “verdadeira” mulher sempre pode emergir.
Maria Josefina Sota Fuentes
Coordenadora da Comissão científica¹
¹ Composta por Ariel Bogochvol, Carmem Cervelatti, Heloisa Prado Telles, Maria Cecília Galletti Ferretti, Valéria Ferranti.
[1] Lacan, J. A terceira. In Opção lacaniana Revista Internacional Brasileira de Psicanálise n. 62. São Paulo, Eólia, dezembro de 2011, pág. 29.
Simone de Beauvoir, que descartava qualquer essência ontológica natural que qualificasse o “segundo sexo”, com a célebre afirmação “não se nasce mulher, passa-se a sê-lo”, atribuiu à sociedade patriarcal a matriz das identificações que terminaram por oprimir as mulheres, na luta pela igualdade, e não deixou de considerar também os efeitos da “pesada contingência corporal”, isto é, a menstruação, a maternidade e a menopausa, que as mulheres têm de suportar. Com as transformações do movimento, hoje o feminismo pós-moderno butleriano não defende mais a igualdade entre homens e mulheres, mas desconstrói o próprio binarismo, pretensamente normativo, por impor uma heterossexualidade compulsória baseada nos papéis ditados pela cultura e anatomia. Reivindica-se, assim, a propriedade de um corpo sem gênero, performático, deleite de um gozo sem os limites da castração e da diferença sexual.
O tema que a EBP-SP escolheu para esta Jornada de trabalho não se deixa revelar tão facilmente, tal como uma concepção baseada na suposta “natureza” poderia levar a crer, constituindo-se antes como uma questão. Sobretudo, e encore, considerando os problemas da época relativos ao corpo, que desvelam a complexidade de sua própria constituição, e ao feminino, quando, ainda no século XXI, o corpo das ditas “mulheres” são objeto de segregação e maus-tratos. Considerar também os deslocamentos do próprio movimento feminista na cultura e tudo que já foi dito sobre o tema das mulheres em psicanálise, implica ainda trazer para o debate o saber e os impasses que o discurso psicanalítico recolhe da sua experiência hoje, bem como os movimentos feministas, o discurso da ciência, os campos jurídico e religioso, não sem a arte que, desde Freud, ilumina o campo da psicanálise.