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Resenha: Capítulos dos Seminários 19 e 23

Sílvia Sato (membro da EBP/AMP)

 

A noção de Corpo de Mulher poderia ser tomada como algo claro, se não fosse tema de uma Jornada Psicanalítica, o que nos exige situar o corpo e a mulher para podermos falar de um corpo de mulher. Indo além da marca da ausência do pênis, que permite a inscrição de uma falta na imagem do corpo, esta resenha visa localizar, em duas partes de dois seminários de Lacan, a particularidade do gozo de uma mulher, na relação com a castração e com o real.

No Seminário 19, capítulo 7 - A parceira desvanecida (1), Lacan percorre a linguagem para sustentar que dela se produz a pergunta sobre a diferença dos sexos e que da função fálica se induz a pergunta sobre a diferença entre dois parceiros.

 

A partir da lógica das proposições, mais especificamente com a disjunção, onde duas proposições não podem ser falsas ao mesmo tempo, Lacan conclui que há uma discórdia entre o lado homem e o lado mulher das fórmulas da sexuação, pela inconsistência das universais, ou seja, de um lado, ‘Existe um que não está inscrito na função fálica’ e de outro, ‘Não existe um que não está inscrito na função fálica’, sendo a segunda a negativa da primeira. Ele considera a segunda proposição, ‘Não existe um que não está inscrito na função fálica’, para sustentar que a mulher, pelas melhores razões, não poderia ser castrada. 

 

Na página 45 do mesmo Seminário, no capítulo 3 - Da anedota à lógica (2), ao interrogar o que vem a ser  a   existência,   ele   fala:  “será  que  algum  dia  perceberemos  que,  ao  lado  do  frágil,  do  fútil, 

do inessencial que constitui o existe, o não existe, ele sim, quer dizer alguma coisa?”. E segue afirmando que “se não todas as mulheres lidam com a função fálica, será que isso implica que há as que lidam com a castração?”. Isto o leva a apontar que “a essência da mulher não está na castração”, está além do Pai, de modo que a partir do real, “elas não são castráveis”. Ele conclui: “é do real que a mulher tira sua relação com a castração”, o que nos dá o sentido do não-toda.

 

Voltando ao capítulo 7 deste mesmo Seminário 19, com a disjunção, Lacan afirma: “no nível em que a disjunção teria chance de se produzir, encontramos de um lado, somente um, ou, pelo menos, ao menos um, e do outro, a inexistência, isto é, a relação de um com zero”. Assim temos, de um lado, pelo menos um e do outro a inexistência. Logo, encontramos somente um dos dois sexos. Especificamente do lado da mulher, a universal faz surgir a função fálica da qual participa ao querer arrebatá-la do homem, o que não universaliza a mulher.

 

Lacan já havia afirmado que a mulher é não toda, e nesse momento localiza que “ela encerra em si um gozo diferente do gozo fálico, o gozo propriamente feminino, que não depende dele (do gozo fálico) em absoluto”. Desse modo, de um lado temos a relação necessária e do outro a contingente, e Lacan conclui que “se a mulher não é toda, é porque seu gozo é duplo”.

 

Assim, do lado mulher, o não todo é essencialmente dual, vai além do gozo fálico, se diferenciando dele como gozo suplementar, feminino. Com isso, podemos perguntar sobre as consequências da duplicidade do gozo da mulher em sua possibilidade de ter um ‘Corpo de Mulher’.

No capítulo 8 - Do sentido, do sexo e do real (3), do Seminário 23, Lacan, com base na concepção do real como aquilo que não se liga a nada, retoma a castração em sua dificuldade de situar na função que lhe é própria na análise, já que pode ser fantasiada. Para a mulher, onde se articulam    barrado e S(    ), Lacan detalha que o Outro é barrado porque não há Outro do Outro, e que essa barra, qualquer mulher pode saltar, é a barra entre significante e significado. Mas haveria outra barra, a que barra o Outro,      . Sobre esta segunda, Lacan afirma que “essa barra diz que não há Outro que responda como parceiro”.

 

Deste modo, aponta que sob a necessidade de que haja um Outro do Outro, está a ideia de que haveria Deus ou A mulher. Então, se não há Outro que responda como parceiro, é preciso inventá-lo, com seu próprio sinthoma, o que inclui um acontecimento de corpo.

 

É isto que podemos escutar no testemunho de passe de Silvia Salman (4), que com o significante que vem do pai, desenho animado, condensa um corpo vivo e animado, mas que é desenho e masculino, deixando em suspenso o corpo de uma mulher. Para além do sintoma

fugidia, inventa como sinthoma o encarnada, avesso do desenho animado, que concentra o corpo vivo e feminino, onde “os pedaços de mulher animam um corpo que se pode agarrar” e com o qual pode agarrar.

 

(1) Lacan, J.: O seminário livro 19, capitulo VII- A parceira desvanecida, JZE, RJ, 2012.

(2) Lacan, J.: O seminário livro 19, capitulo III- Da anedota à lógica, JZE, RJ, 2012

(3) Lacan, J.: O seminário livro 23- O sinthoma, capítulo VIII- Do sentido, do sexo e do real, JZE, RJ, 2007.

(4) Salman, S.: Um inconsciente analisado - quando o sintoma não se encontra mais animado pelo fantasma, in Arteira n° 5, EBP- Santa Catarina, outubro de 2013.

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