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DO PANSEXUALISMO AO OUTRO SEXO

DO PANSEXUALISMO AO OUTRO SEXO

Marcelo Veras *

A partir dos anos 80, começou a ganhar espaço cada vez maior, sobretudo no ambiente universitário americano, a Queer theory. Dentre os diversos e heterogêneos aspectos da sexualidade abordados pela nova corrente, chama atenção a ruptura proposta entre o binarismo masculino/feminino e a abordagem da sexualidade completamente oposta à clássica sentença de que o destino do sexo é a anatomia. Judith Butler é, sem dúvidas, um dos mais conhecidos expoentes.http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2002000100009

Apesar de ser frequentemente chamada de pós-feminista, ela mesma recusa esse rótulo e prefere ser chamada de feminista, por reconhecer que há, ainda, muitas situações em que as mulheres precisam dessa identidade para superar as dificuldades econômicas e culturais. Embora seja próxima da psicanálise, o que lhe incomoda sobre a questão dos transgêneros é o modo como eles são patologizados pela psicanálise.

 

Judith Butler

Podemos pensar o modo como a psicanálise aborda o sex/gender problem partindo de um esboço de resposta a um comentário de Butler em uma entrevista recente:

 

...fui conversar com alguns lacanianos outra noite e um deles disse: “Bem, mesmo se pensarmos na transexualidade como uma espécie de psicose, isso não é uma categoria patologizante, pois, quando uma pessoa fala sua psicose, ela está nos dando a estrutura da psique humana, portanto está falando uma verdade universal”. Achei aquilo um argumento bastante espantoso, porque, mesmo que o psicótico esteja falando uma verdade universal de algum modo, o fato é que está falando essa verdade a partir de uma posição psicótica e chamá-la de psicótica é invariavelmente patologizante nesse sentido. (Knudsen, P., Conversando sobre psicanálise, uma entrevista com Judith Butler, Estudos Feministas, Florianópolis, 18(1): 161-170 Janeiro-Abril, 2010.)

 

Uma confusão se estabelece quando a leitura de Lacan é feita pelo prisma do feminismo. A feminilidade sobre a qual Lacan se debruça vai de encontro precisamente às ideias correntes do feminismo de sua época. Daí a referência em mais de uma passagem de seus textos ao “MLF”, Mouvement pour la Libération de la Femme. Podemos inicialmente tomar esta diferença partindo do conceito freudiano de identificação. O feminismo é um movimento, ou seja, um coletivo agrupado em torno do significante d’A mulher. Já a feminilidade, na teoria de Lacan, é a resposta singular ao que não é passível de coletivização. A isso Lacan definiu precisamente como a falta desse significante. Não se trata, contudo, de uma ausência de um significante que outrora tenha feito sua inscrição. É portanto uma falta radical, uma foraclusão, o que não impede que algo dessa ausência faça retorno no real.

 

Decorre dessa constatação que nenhum ser falante pode encontrar “Uma” mulher a quem possa se identificar, independente do sexo biológico, do gênero ou de qualquer posição “trans” que o mundo Queer possa fabricar. Essa impossibilidade, contudo, não deixa de convocar cada um a responder sobre sua posição sexual. Na histeria, a inexistência é velada pela “outra mulher”, onipresença na clínica dos desencontros amorosos femininos. Na psicose, pela falta do significante do Nome-do-Pai, a simbolização dessa impossibilidade fracassa. A constelação clínica dos fenômenos que se seguem tem no horizonte aquilo que Lacan chamou, no Étourdit, de “empuxo à mulher”. Assim, não se trata de ver as questões da transexualidade e da feminilidade como patologias, mas como fazendo parte de um universal da loucura, a loucura que Lacan, nos anos setenta, evocou com a expressão de que as mulheres “são loucas, mas não são loucas do Todo” (Les femmes sont folles, mais pas folles du Tout.)

 

 À falta do significante d’A mulher, Lacan responde com o significante do falo. Contudo, pelo próprio fato de que o simbólico não é capaz de marcar toda a experiência de gozo do ser falante, há um gozo que não pode ser medido, qualificado ou contado, pois estas são operações de linguagem. Como assinala Éric Laurent, a instituição de um significante recobre algo da percepção imaginária: Em um bom método estruturalista, Lacan distribui a oposição ter/não ter o pênis em uma oposição simbólica, marcada ou não marcada, situada a partir do falo. A oposição estrutural faz do falo um traço simbólico distribuindo dois termos, marcado e não marcado pela presença do órgão, traço imaginário. (Laurent, E., Positions féminines de l´être,  La Cause Freudienne, nº 24, Paris, 1993)

 

Ser homem ou mulher deixa de ser, consequentemente, apenas uma questão complementar entre ter ou não ter o pênis. Ao afirmar que a sexualidade do ser falante passa pelos caminhos equívocos da linguagem, a psicanálise rompe com qualquer naturalismo no sexo. Contudo, o fato de que a sexualidade seja atravessada pela linguagem, não quer dizer em absoluto que ela seja capaz de nomear sem restos o gozo em questão. Em Lacan, a constatação de que o Outro é barrado indica precisamente uma incompletude do simbólico, velada apenas parcialmente pelo Nome-do-Pai.

 

Quando Lacan lança mão das fórmulas da sexuação, fica evidente que, para além do simbólico e do imaginário, o real de um gozo fora da lógica masculino/feminino está em questão. Por ser uma experiência de gozo e por não ser possível um enquadramento na lógica do com/sem órgão, essa experiência marca para todo ser falante, biologicamente marcados como homem e mulher, que ambos têm a ver com o que na teoria lacaniana será designado como Outro sexo.

 

Somente é possível essa percepção quando levamos em conta que as fórmulas da sexuação não são meros signos ou quantificadores, mas que elas se aplicam ao gozo encarnado, ou seja, elas devem dar conta do gozo, de seu continente corporal e daquilo que lhe escapa. O que a lógica do não-todo veio demonstrar é que marcar as experiências de gozo nesse continente através da lógica da castração e do falo é insuficiente. O corpo é “não-todo” afetado pela repartição sexual instaurada pela lei fálica. Na comédia dos sexos atual, diante da desnaturalização dos corpos e da multiplicidade de gêneros possíveis, o que permanece é a heterossexualidade para todos, pois todo falasser tem que se virar com o Outro sexo... que não existe.

 

*AME da EBP/AMP

 

 

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