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ORLAN: UM NOME, UMA OBRA PARA UMA SINGULAR EXPERIÊNCIA CORPORAL

 

Blanca Musachi*

“Não a decifrei. Mas ela também não me decifrou”C.L.**

Nascida na França, em 1947, Mireille Suzanne Francette Porte, ORLAN é uma artista multimidiática mundialmente conhecida e reconhecida pelas audazes performances cirúrgicas realizadas em seu corpo e em algumas ocasiões transmitidas ao vivo via satélite para galerias e museus. S’habiller de sa propre nudité (nome de uma obra de 1976) propõe o que experimenta no corpo: a dissolução dos limites entre o dentro e o fora, entre o público e o privado, tema transversal em toda sua carreira artística.

Desde os anos sessenta até a atualidade, modifica seu corpo de forma permanente e contínua através de operações cirúrgicas.  Antes   das   cirurgias   que  começaram  em  1990, 

através das quais modificou definitivamente seu aspecto físico, o trabalho de ORLAN não se diferencia muito do trabalho de outras artistas feministas que tentam construir identidades múltiplas através de diversas caracterizações. No começo, seu trabalho foi principalmente de performances, fotografias, instalações, questionando o imaginário feminino ocidental construído pela da historia da arte. Durante dez anos, antes dos anos 90, trabalhou sobre o tema da identidade feminina na iconografia cristã, utilizando sua própria imagem em um contexto barroco profundamente herético.

Em interessante conversa entre Jaques-Alain Miller e ORLAN, publicada pela primeira vez em 2008 em Le nouvel Âne, a artista diz que seu nome é produto de uma análise. Fez uma experiência de análise por mais de sete anos e uma intervenção do analista chamou a sua atenção sobre a assinatura no cheque com o qual pagava as sessões: lia-se “morta”. Depois disso, decidiu que nunca mais estaria morta e começou a pagar em cash. Passou a acreditar na psicanálise e quis fazer-se um nome, rebatizar-se, inventar-se a si mesma. Apenas conservou o “or” do sobrenome. Mas ela destaca em entrevista publicada na Colofón 33, que ORLAN, nome que a remonta sem cessar à superfície, é

um nome difícil de escrever. Pode-se falar de uma borda difícil de escrever para ela que precisa do recurso às performances infinitas dos quirófanos e das cirurgias plásticas.

Foi decisivo o encontro com a psicanalista Eugénie Lemoine-Luccioni e seu livro “O vestido”, cujo capítulo “A segunda pele” a incomodou particularmente. Em resumo, ela lia: “Jamais se tem a pele daquilo que se é, e não tem exceção à regra, pois não se é jamais o que se tem”. Miller lhe faz observar que o que a incomodara fora a posição de uma analista mulher. Ela responde que antes de tudo era a ideia de não poder tocar o corpo.

A partir disso, e em continuidade com sua linha de trabalho de questionamento do estatuto do corpo na sociedade, e em particular do corpo das mulheres, escreveu O manifesto da arte carnal. Em seguida, foi em busca de cirurgiões para realizar a hoje famosa série de cirurgias e intervir no real da carne de um corpo que fica sempre para ela no sfumatto da apresentação e representação.

Não é indiferente que ORLAN tenha definido também o corpo como uma vestimenta, assim como não é indiferente que nas performances dos quirófanos-cenários os médicos, os assistentes e ela mesma, vistam roupas de grifes. Destaca-se, também, que em sua operação nada se perde. Em ORLAN: Arte carnal, Jorge Dueñas Villamiel comenta que até a pós-cirurgia é uma operação-obra em que se procede uma reciclagem dos restos carnais que a artista recolhe para fabricar pequenos relicários onde escreve, por exemplo: “este é meu corpo, este é meu software” ou o já citado “o corpo é uma vestimenta”, escrito repetido até a cacofonia (!). Com esses relicários a artista coloca literalmente seu corpo à venda. ORLAN tenta a operação de ter um corpo sem perda alguma.

É impactante como ela relata que teve medo, inquietação, diante da primeira ideia da possibilidade de tocar o corpo, e que antes de realizar as cirurgias telefonou para a analista com a qual estava em análise, e para a outra. As duas a desaconselharam a fazê-lo. Mas ORLAN observa que ficou chocada com a reserva da própria analista que não a convocou imediatamente para uma sessão, posto que seu chamado foi equivalente a um “quero me suicidar”, como podemos ler na conversa com Miller. Restou o “apelo performático” que iniciou com a série de cirurgias, intervenções, cortes na carne para tocar o corpo e mostrar o que no campo do olhar é opaco. Uma intervenção singular que pretende seguir realizando até a morte, pois pactuou com alguns museus uma exposição do seu corpo morto para uma performance final do seu bio-art, para assim ser uma artista até o fim.

Destaca-se nas entrevistas tanto com Jaques-Alain Miller, quanto na publicada na Colofón 33 (p.45-48), a curiosidade de ORLAN sobre o mistério do feminino, a distância do corpo utilizado como instrumento, o rechaço do seu corpo de mulher e o recurso às imagens – como o recurso às imagens mitológicas de mulheres, que ela desconstrói e recombina em seu rosto para recriar-se a si mesma na busca de uma identidade que não encontra ponto de basta e que ela prefere chamar de nômade. O que está em jogo é, por um lado, a busca de uma identidade e, por outro, a negação da diferença sexual (ela se diz uma mulher-homem).

Porém, ORLAN diz que o corpo, apesar de tudo, permanece estranho. Miller observa que ela tem uma distância em relação a seu corpo, que o trata como uma exterioridade, como se fosse um objeto do mundo que pode manipular, moldar, modificar, e indaga: o que se desconectou entre ela e seu corpo? Sobre seu rechaço do corpo de mulher ela disse que foi precoce, que começou a sentir que não queria ter aquele corpo desde que começou a menstruar e os seios começaram a crescer: “não tinha em absoluto vontade

de ser uma mulher; de parir filhos como uma vaca; de ser um ventre; essa maquinaria não me interessava em absoluto”.

Em Cross, 2004, escreve: “Não duvidamos em colocar-nos uma prótese de cadeira se o precisamos, mas pensamos que na aparência temos que ser felizes com o que temos por defeito” (Dueñas Villamiel: 2011/2012). Também: “O corpo, o rosto, tal e como a natureza o deu, é uma máscara, uma camisa de força que coersiona aquilo que poderia ser diferente” (Colofón 33; p. 44).

Com essas ideias, ORLAN trabalha para “tocar” o corpo através das cirurgias, mas também chama a atenção o recurso da leitura de textos que realiza durante as performances nos quirófanos-cenários, referidos muitas vezes ao tema do corpo (vídeos disponíveis no Youtube). O que dizer disso senão que ela sabe talvez que também precisa do Outro da linguagem, da palavra, da letra para fazer ressoar algo na carne que faça um corpo, pois ela bem disse, na citada entrevista na Colofón, que desde o começo ela não tem um corpo. No uso das imagens de fotos e vídeos de si, ORLAN estaria de acordo com Mearlau Ponty que escreveu: “somos uma realidade construída pelo olhar”, “somos seres olhados no espetáculo do mundo”, que Lacan evoca no Seminário 11, no debate e crítica à fenomenologia da percepção, como lembrou Bassols na conferência de encerramento do VII Enapol.

Mas é importante considerar, como disse Bassols com Lacan, que é impossível uma imagem da libido - cor de vazio - por mais coloridas que sejam as imagens utilizadas como recurso. O corpo falante do gozo fala a partir dessa cor de vazio, substância gozante impossível de apreender pela imagem. A imagem inclui o enigma do invisível. Para poder ler uma imagem é preciso considerar que é um enigma que pede para ser decifrado a partir das ressonâncias semânticas que a língua introduz no corpo. O segredo da imagem é a castração. O gozo toma corpo a partir do Outro da linguagem, do significante do falo que faz de ponte. Quando não se tem essa ponte é preciso inventar outras soluções, algumas vezes delirantes, destaca Bassols.

ORLAN não se conforma com o que a natureza lhe deu, nem com o que a sociedade lhe impôs através da cultura. Rechaçou seu corpo de mulher precocemente. Suas cirurgias foram e são tentativas de liberação, de redefinição, de recriação de si mesma com ajuda da tecnologia, na metonímia de uma identidade nômade que nunca acaba de se encarnar. Porém, sua trajetória lhe permitiu inscrever-se no discurso da história da arte “numa interseção entre minha história pessoal, minha singularidade, meu espírito crítico e a história da arte antiga e atual” (Colofón, pág. 47).

Corpo de mulher? Lembremos, para terminar, as palavras de Heloísa Caldas durante a discussão depois da excelente conferência intitulada Corpo de mulher: da imagem ao gozo. Ela dizia que a psicanálise não se ocupa de homens ou de mulheres, mas de sujeitos, de parlêtres, portanto de corpos de gozo. A anatomia é uma borda com a qual os seres falantes se viram de maneiras diversas e singulares.

A arte ensina a psicanálise outras soluções possíveis para os corpos de gozo. ORLAN, que considera, por um lado, o corpo como uma camisa de força e, por outro, faz uma experiência do sem limites do corpo, continua na tentativa de soluções para o estranho do corpo, encontrando talvez no discurso da arte algo que funciona como uma borda ao que para ela não tem dentro nem fora.

 

*EBP/AMP

 

**Lispector, Clarice: sobre o enigma da Esfinge in “A descoberta do mundo”, citado por Benjamin Moser em Clarice, uma biografia; Cosac Naify, segunda reimpressão, São Paulo, 2014.

 

BIBLIOGRAFIA

ORLAN; Acesso em: http://www.orlan.eu/bibliography/biography/

Conversação entre ORLAN e Jacques-Alain Miller; Acesso em: http://blog.elp.org.es/all/cat17/impone-tu-oportunidad-atrapa-tu-1/

Dueñas Villamiel, Jorge: ORLAN: Arte carnal, em http://www.realidadesinexistentes.com/orlan-arte-carnal

Entrevista a ORLAN, em Colofón 33, Boletim da FIBOL, p 42-48; Buenos Aires, 2013.

Bassols, Miquel: Conferência de encerramento do VII Enapol em São Paulo, setembro de 2015: El cuerpo, lo visible e lo invisible. Acesso em: http://www.radiolacan.com/es/topic/666/3

Caldas, Heloísa: Corpo de mulher: da imagem ao gozo, conferência na EBP-SP de noite preparatória para as Jornadas Corpo de mulher; maio de 2015; Acesso em: http://leonardocr93.wix.com/jornadas2015ebpsp#!podcast/cug1

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