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O SAPO ABRAÇADO À GARRAFA DE CERVEJA: CONVERSA COM O TEXTO DE SLAVOJ ZIZEK – “Quando a sexualidade se torna sinistra”

 

Eliane Costa Dias

No texto When sexuality becomes creepy (ŽIŽEK, Slavoj (2015) Quando a sexualidade se torna sinistra. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. 0, p. 10, 2015. Disponível em: http://revistalacuna.com/2015/09/29/quando-a-sexualidade-se-torna-sinistra/), publicado recentemente no número inaugural da Revista Lacuna (mais uma revista de psicanálise online), o filósofo e cientista social Slavoj Zizek afirma:

 

“A sexualidade hoje vem sendo reduzida cada vez mais às satisfações encontradas nos objetos parciais: somos constantemente bombardeados com objetos-engenhocas que prometem nos proporcionar um prazer desmedido e sem muito esforço”. Apresenta a última moda a esse respeito – a chamada Unidade de treinamento de desempenho e resistência (Stamina Training Unit)

Uma contraparte ao conhecido vibrador: um dispositivo para masturbação com formato semelhante a uma lanterna a pilhas. Basta colocar o pênis ereto na abertura na extremidade e apertar o botão para que o objeto vibre até se obter a satisfação desejada. O produto está disponível na internet, em opções variadas de cores, nível de constrição e configuração, reproduzindo os três orifícios mais corriqueiros para a penetração sexual (boca, vagina, ânus). No Brasil, o produto é comercializado com o nome de “lanterna” e na Inglaterra como fleshlight, num jogo de homofonia entre flashlight (lanterna) e flesh (carne).

Em sua leitura da novidade de mercado, Zizek interpreta que o que se adquire é, na verdade, um objeto parcial (literalmente, uma zona erógena) que priva o sujeito do ônus embaraçoso de ter que lidar com o outro em sua totalidade. E sugere que no horizonte ideal apontado por essa tendência de abordagem da intimidade, poderíamos comparecer a um encontro “devidamente munidos com o gadget mais conveniente (um com um vibrador e o outro com o tal dispositivo masturbatório); assim, após educadamente nos cumprimentarmos, colocaríamos o tradicional vibrador dentro da “lanterna” e ligaríamos ambos ao mesmo tempo, abrindo mão de toda a diversão para esse casal ideal, ao passo que nós, os parceiros humanos ditos reais, sentaríamos numa mesa não muito distante e beberíamos um chá apreciando tranquilamente o fato de que, sem muito esforço, daríamos por cumprida nossa obrigação de gozar enquanto os dois apetrechos vibram e gemem ao fundo” ( ZIZEK, S. – idem.).

Essa fantasia de caso perfeito de gozo entre duas máquinas que gozam por nós seria, na verdade, um suplemento à cena real e sempre faltosa do encontro de dois corpos sexuados, marcada pela incompletude e pela não relação.

 

O autor descreve outras variações dessa fantasia circulando na mídia e no imaginário social contemporâneo. Destaco um comercial inglês que, segundo Zizek, em sua primeira parte é a edição do conhecido conto de fadas: uma jovem caminha próxima a um riacho e encontra um sapo, o beija e ele se transforma em um belo e jovem rapaz. Mas a história não termina por aí: o rapaz lança um olhar desejoso sobre a donzela, puxa-a contra ele e a beija… e eis que ela se transforma numa garrafa de cerveja, estupidamente gelada, a qual ele segura triunfante.

“Temos então ou uma mulher com um sapo ou um homem com uma garrafa de cerveja; o que não podemos jamais obter é o casal dito ‘natural’ formado pela linda mulher e o belo homem”.( ZIZEK, S. – idem.)

 

Mas, por que não?

 

Zizek mostra que os vários exemplos bizarros descritos são versões distintas do aforismo com que Lacan enuncia o real da condição dos seres falantes: Não há relação sexual. O “estranho/sinistro” (no sentido mais freudiano do termo) na sexualidade tem a ver com o fato de que não há relação natural entre os seres sexuados. O real da incompletude entre o Um e o Outro nos joga inexoravelmente no enigma do desejo do Outro. “O que torna o próximo ‘sinistro’ não são suas atitudes esquisitas, mas, sim, a impenetrabilidade ou enigma do desejo que sustenta seus atos”.

O mal-estar da incompletude e o impossível da não relação só podem ser suplementados por um objeto fantasmático. No encontro, cada um dos sujeitos está às voltas com seu próprio fantasiar subjetivo: a mulher sonha com o sapo que seria o homem perfeito; o homem sonha com a mulher que lhe daria satisfação imediata sem qualquer demanda. Portanto, o "sinistro" em jogo na sexualidade residiria na constatação de que o suporte fantasmático do “par ideal” seria a inconsistente figura de um sapo abraçado a uma garrafa de cerveja (ZIZEK, S. – idem). Uma imagem-real, habilmente recoberta com o véu do amor e suas desventuras. O “sinistro”, portanto, é o inerente à sexualidade humana.

 

No entanto, em nota o tradutor do artigo alerta que, embora a intenção do autor de jogar com o termo freudiano “estranho/sinistro” seja clara, a palavra creepy abre a possibilidade de distintas interpretações: “apavorante”, “bizarro”, “medonho”, ou ainda, “esquisito”, “insólito”, “esdrúxulo”. Poderíamos, então, transformar o título do artigo de Zizek numa interrogação: When sexuality becomes creepy? Perguntando de outra forma: o que há de creepy na sexualidade nos tempos atuais?

 

A partir do último ensino de Lacan, a noção de foraclusão generalizada remete ao fato de que o humano se constitui a partir do encontro entre o vivo e a linguagem, encontro sempre contingente e traumático, na medida em que a entrada do significante recorta o corpo vivo e o esvazia do gozo, abrindo um furo no simbólico impossível de recobrir ou de significantizar. Todo sujeito, a partir desse furo constituinte, tem que encontrar uma saída para lidar com o real do gozo, com o real pulsional, que é sempre excessivo, que ex-siste e insiste, podendo ser avassalador.

 

Do lado masculino da solução, o significante e a castração fazem barreira ao gozo. A significação fálica e o fantasma circunscrevem os limites do gozar. Desse lado da sexuação, somos todos (homens e mulheres) sujeitos divididos suportados pela fantasia da relação com o objeto. Somos todos aspirantes ao ideal de sapos abraçados à cerveja.

 

No entanto, o lado feminino da sexuação diz de outra relação com o gozo que não passa pela baliza fálica – um gozo suplementar ao gozo fálico. Na perspectiva lacaniana, o feminino designa uma dimensão do gozo que retorna e que pode ser experienciada pelo sujeito, mas fora da significação fálica: um gozo opaco, difuso e enigmático, impossível de nomear. Gozo louco, sem sentido e sem limites, movido por um imperativo superegoico – goza!

 

Na cultura contemporânea, sob a égide do discurso capitalista e do discurso da ciência, a subjetividade e os laços sociais se constituem ancorados na lógica do consumo e do empuxo ao gozo. A globalização e o tecnicismo, ao proporem a padronização e a massificação, resultam em um afrouxamento da eficácia das referências simbólicas e numa “dessubjetivação” – um apagamento do sujeito e das singularidades.

 

Na perspectiva do último ensino de Lacan essa “atualidade” tem sido pensada como um movimento de “feminização” da cultura. Entendendo que, na impossibilidade de recalcar, de esconder o mal-estar inerente ao sujeito, o declínio do simbólico convoca a um a-mais de satisfação. A queda dos ideais e dos semblantes conduz a um empuxo ao gozo fora do sentido, sem limites, sem referências simbólicas que possam capturá-lo ou circunscrevê-lo. Um movimento perigoso e mortífero na medida em que além de certo limiar, o excesso de gozo leva ao despedaçamento do corpo e ao desaparecimento do sujeito.

 

 

A psicanálise tem a dizer que o feminino em todo corpo nos seres falantes pode levar à devastação. Mas pode levar também ao ultrapassamento da “fixão”, levar à diferenciação, permitindo invenção, criação, singularidade. Afinal, a queda dos semblantes, atravessar essa experiência vertiginosa com o real da inconsistência do Outro e da existência, não é o que se visa em um tratamento analítico? A direção de um tratamento, para homens e mulheres, não passaria, então, por um “saber fazer” com o gozo feminino?

 

No entanto, o texto de Zizek aponta algo um pouco mais creepy nos tempos atuais – o engodo de uma suposta transgressão perversa da ordem social na cultura hiper-moderna.

 

 

O autor destaca que Freud e Lacan sublinharam persistentemente que a perversão, longe de ser subversiva, é o avesso oculto do submetimento ao poder. O perverso sabe exatamente o que sustenta sua posição enquanto objeto de jouissance do Outro. “No laço histérico, por outro lado, o sujeito ($) sobre o objeto a representa o sujeito que se encontra dividido, traumatizado por aquilo que, enquanto objeto, ele é para o Outro, e às voltas com o papel que exerce no desejo do Outro” (ZIZEK, S. – idem). O sujeito

histérico se horroriza com a possibilidade de ser reduzido a um objeto. O que a histérica espera do Outro-mestre é saber sobre seu valor enquanto objeto.

 

O autor formula a hipótese de que o fenômeno que vem sendo chamado de bordeline seria nada mais que uma forma contemporânea da histeria.

 

“Felizmente, a ordem social já não mais oprime as mulheres tão explicitamente como na época da chamada ‘dona de casa’; contudo, elas ainda enfrentam pressões conflituosas. (...) Algumas das contradições inclusive se intensificaram e se agravaram, como, por exemplo, o fato de as mulheres terem de se sobressair na vida profissional sem deixar de cumprir os requisitos tradicionais da maternidade; as mulheres sofrem por se verem sob um excesso de vazões ou descargas para o desejo, que são contraditórias entre si. Daí a manifestação contemporânea da histeria não ser a da intrusão psicossomática do corpo na ordem social: em face da demanda impossível de se “ter tudo”, a histérica, com efeito, “faz greve”, recusando o desejo por completo”.

 

“O sujeito borderline é, pois, uma histérica sem um mestre, uma histérica que não é oprimida pelo mestre, mas que se vê demandada por uma figura ao estilo ‘perito-consultor’ a exercer e concretizar todo seu potencial, para que ‘tenha tudo’, levando uma vida plena. Essa injunção, obviamente, adquire de imediato a dimensão superegoica de uma pressão insuportável, à qual o sujeito só pode responder por meio da retirada ou recolhimento do desejo” (ZIZEK, S. – idem).

 

Ou seja, na era da permissividade, o empuxo ao gozo pode levar à abolição do desejo, a uma errância pelo desfiladeiro de objetos-gadgets pela impossibilidade de desejar.

 

Se isto é o que há de creepy na sexualidade nos tempos atuais, a resposta da psicanálise para o mal-estar contemporâneo passaria, não por uma busca de saber e dominação (saída ilusória da ciência), mas um “saber fazer” com o gozo feminino. Um saber fazer que permita suportar o sem sentido e a incompletude. Suportar a vã existência a partir da invenção de uma singularidade única, mas responsável e implicada com o laço social e com o campo do Outro, ainda que inconsistente.

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