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O CORPO EM DISPERSAO - FRANCESCA WOODMAN *

Bianca Coutinho Dias **

Francesca Woodman criou extensa obra fotográfica e produziu, em sua maioria, fotografias em preto e branco nas quais se autorretratava em paisagens diversas: sua casa, jardins, construções abandonadas, florestas. São imagens densas, vertiginosas e que nos fazem viajar por abismos e destroços insondáveis, provocando uma sensação de estranha familiariadade, com sua presença de força indescritível, que atrai e seduz, sem que possamos apreender ou reter aquilo que passa diante dos olhos, que permanece como um vulto poderoso e enigmático, assim como sua vida-curta, intensa e rodeada de enigmas.

 

Em muitas de suas fotografias, opera com desfocamentos e longas exposições, de forma que os corpos fotografados acabam por se fundir e, mesmo quando as imagens são nítidas, os corpos e objetos parecem estar sempre se procurando, em constante processo de infiltração-planta e corpo, luz e carne, chão e pele, arquitetura e vida, vestígio e presença. Abandono e habitação convivem de maneira profunda e, por vezes, convulsiva. São fotografias de escombros e a própria dimensão da ruína que se atualiza no corpo.

 

FRANCESCA WOODMAN - SEM TÍTULO (NEW YORK) 1979-1980 - IMPRESSÃO DE PRATA COLOIDAL 21 X 21 CM

Lacan, em um texto sobre Merleau-Ponty estampado por Les Temps Modernes, em 1961, atribuiu à obra de arte o lugar do que não se poderia ver a olho nu. Vale dizer que uma definição provisória da obra de arte seria, portanto, a de que ela é um artefato que vê, em suma, a invisibilidade do visível. Nas imagens de Francesca, no invisível que se revela, há sempre uma pulsação de intensidades. O desejo não cessa de deambular entre fluxos, pensamentos, volúpia, pele. O corpo de Francesca parece amarrado ao seu limite, mas dele escorre uma leveza indescritível.

 

O susto parece inevitável. Assim foi Francesca na sua experiência com a fotografia, mas, sobretudo, na sua viagem vertiginosa ao real do corpo. Assim vamos nós, ao encontro das suas imagens – o extático através das retinas. E o que se vê são blocos de intensidade que se espalham em torno do espaço, fragmentando-se ao limite, subvertendo os contornos da própria subjetividade, evidenciando a potência de uma imagem que está sempre migrando para outro lugar.

 

Woodman entrou para a fotografia usando o corpo como experiência, como laboratório de si. Fez uma viagem sem volta ao limiar do corpo, como se percorresse seus limites para encontrar o inevitável: sua imagem-vulto, uma quase miragem, algo que atravessa o espaço intenso da vida refletindo outra imagem, o além de si, que vaga desfocada, entranhada entre o tempo e espaço, como se deles fizesse parte, mas sem habitar nenhum, como uma sombra que toca sensivelmente nas coisas atravessando as superfícies mais rudimentares, transitando pelas coisas.

 

FRANCESCA WOODMAN | FROM POLKA DOTS (PROVIDENCE, RHODE ISLAND)1976 | IMPRESSÃO DE PRATA COLOIDAL 13 X 13 CM

Corpo-dispersão-sem rosto, que quando mirado se dissipa entre as coisas do mundo, corpo enterrado na fronteira entre a ausência, a aparição. Seu rosto também pouco revela. A verdade de sua aparência é um exílio. Sua imagem não é a revelação de uma realidade, mas de uma sombra. Por vezes ouvimos Artaud: o pulsar o corpo sem órgãos; por vezes Bataille: a febre e a intensidade; mas, por vezes, entre a sombra e a claridade, o canto silencioso de Rilke: a sombra da morte. Estamos na perspectiva da sensação, numa leitura-gozo que faz o olhar mergulhar no absurdo e nele se perder, como se seu corpo estivesse mergulhado em um contínuo jogo de simulacros em que a origem, a verdade, a matriz há muito se apagou. Não há realidades, mas tudo é o que é: um corpo estendido no deserto de uma paisagem. O deserto é a fotografia, mas o corpo parece atravessado de sensações, de febre. Tudo parece vivo e morto e transcorrendo pela linha que cruza uma realidade a outra. As linhas estão sempre se encontrando, fabricando dobras, aberturas, fissuras pelas quais os olhares atravessam e são arremessados para o terreno da epifania e do sublime.

FRANCESCA WOODMAN | SEM TÍTULO (PROVIDENCE, RHODE ISLAND) 1975-1978 | IMPRESSÃO DE PRATA COLOIDAL | EDIÇÃO: 10/40 12,5 X 12,5 CM

As imagens são desconcertantes por suas improbabilidades, e se assemelham, muitas vezes, a uma imagem de sonho, intempestivas e alheias a encadeamentos causais.

 

Na constância do ato de se fotografar, Francesca Woodman estava constantemente forjando uma ruptura de si no corpo das coisas, tecendo linhas de fuga entre seu corpo e a carnalidade do mundo. O mimetismo se dá somente como lapso, gesto inacabado, puro devir-mundo.

 

O que vemos são fluidos, que podem ir para qualquer lado e que tem a força da imprevisibilidade e do descentramento. O que nos causa no seu gesto de autorretratação é a criação de imprevistos e fugazes contornos, confissão de uma vida que vive na obra, uma erosão em si mesmo, um macular-se enquanto sujeito, para criar a vida do eu que vive na obra – em refrações, abandonos e dissoluções de si; imagens que nos tocam e que nos acompanham por muito tempo. O que acontece quando nos saltam aos olhos pela primeira vez é tão poderoso que seu efeito retumbante dificilmente deixará de ser sentido. Voltamos a elas, quando elas próprias não se precipitam, atropelando nosso espírito, trazendo à flor da pele o mesmo arrepio, a mesma sensação de  vertigem. Permanecemos    ligados   a   elas   por   uma 

FRANCESCA WOODMAN | SEM TÍTULO – DA SÉRIE EEL (VENEZA, ITÁLIA) 1978 | IMPRESSÃO DE PRATA COLOIDAL 15 X 15 CM

 

interrogação em aberto, por um elo estranho, enigmático, sempre restabelecido, sem jamais perder o impacto – assim é a fotografia de Francesca Woodman – abismo para quem tem asas, morte e vida se encarando, a possibilidade de se deixar transportar para um ambiente fantasmagórico, profundamente emocional e sensual e, ocasionalmente, perturbado e violento. O brutal e o delicado em diálogo. Não é possível ficar-lhe indiferente pela beleza, pela estranheza e pela audácia. Francesca também não ficou indiferente ao trampolim do real e suicidou-se aos 22 anos, nos deixando seus rastros indeléveis e sua presença, paradoxalmente, tão cheia de sopros de vida e élans criativos, em suas fotografias repletas do paradoxal encontro entre força e vulnerabilidade.

 

FRANCESCA WOODMAN | SEM TÍTULO – DA SÉRIE FROM THE THREE KINDS OF MELON IN FOUR KINDS OF LIGHT (PROVIDENCE, RHODE ISLAND) 1976 | IMPRESSÃO DE PRATA COLOIDAL 11,5 X 9,5 CM

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*Texto produzido na ocasião da exposição "Francesca Woodman" na galeria Mendes Wood e publicado na Revista B.

**psicanalista praticante e crítica de arte.

 

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