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NOTAS SOBRE IDENTIDADE DE GÊNERO E SEXUAÇÃO

 

Lucíola Freitas de Macêdo*

É certo que a psicanálise se ocupe da sexuação, cujo horizonte não é o das identidades de gênero. A psicanálise de ocupa das relações do sujeito com seus modos de gozo – com o gozo dos corpos que perturba as identidades – e não da anatomia como produtora de normatividades ou da anatomia como uma camisa de força. A experiência do inconsciente é um poderoso solvente para certezas de todo tipo. A lógica da sexuação, para a psicanálise, tende a romper o sentido de categorias genéricas, tais como heterossexual, homossexual, bissexual, transexual, pansexual, etc. Ela tem afinidades com a lógica do não todo e do um por um. Neste campo, não há relação fixa nem direta entre identidades de gênero e modalidades de gozo.

Pesem as críticas feitas pelos estudos feministas ao Complexo de Édipo freudiano, e também à terminologia empregada por Lacan (gozo feminino, falo, lado homem, lado mulher, etc.), seria um equívoco segregá-los inserindo-os no hall dos binarismos e da heteronormatividade. Isto seria insistir em desconhecer, deliberadamente, as teorias de Freud e de Lacan. Parece um equívoco isolar e universalizar o argumento das terminologias, passando ao largo dos pontos fundamentais da teoria e, especialmente, da clínica, cuja perspectiva acolhe, por princípio, a diferença e os arranjos singulares que cada um inventa para si, a fim de dar conta dos impasses vividos no curso de sua existência.

 

Com Freud e Lacan, a pergunta sobre a diferença sexual permanece sem resposta, e cada sujeito virá a se situar a seu modo, sempre singular, neste campo sem soluções unívocas ou pré-estabelecidas. Cada qual é responsável por sua bricolagem, mas além dos ideais do sexo de atribuição, do sexo biológico, das certezas e das incertezas, preservando um lugar para o inesperado, para a surpresa, para o não sabido de antemão.

 

François Ansermet (2014) argumenta que as práticas contemporâneas em torno da intersexualidade, da transexualidade e da transgenereidade demonstram que a escolha do sexo se situa para além do campo das identificações, levando a pensar para além de uma lógica das classes e das categorizações. Não há univocidade na sexuação, mas diferentes dimensões e modos de inscrição que se sobrepõem: no plano imaginário há as identidades; no plano simbólico, as questões em jogo na nomeação, filiação e lugar social; no plano real os diferentes modos de gozo.

Jorge Alemán (2014), por sua vez, propõe a partir de sua interlocução com Ernesto Laclau, uma articulação bastante inovadora entre o movimento queer, o populismo e a emancipação. Formula ainda uma dura crítica a certas interpretações do freudismo que dão margem à patologização das questões de gênero: defende que não se deve de modo algum incorrer no histórico erro de atribuir uma relação necessária entre transexualidade e psicose; basta lembrar que não muito longe dos tempos que correm já se deu um grande erro histórico, o de estabelecer-se um vínculo necessário entre homossexualidade e perversão.

Alemán ressalta as importantes repercussões políticas do movimento queer, na medida em que através da performatividade, foi capaz de reverter o insulto e a injúria, em nomeação, se afirmando como uma nova posição política, e como uma nova singularidade no campo de forças dos movimentos sociais; mas adverte que tanto o próprio movimento, quanto sua crítica ao heteronormativismo e ao caráter normativo de certos dispositivos institucionais, tais como o Estado e a família, não se constituem, por si só, como movimentos emancipatórios. Adverte para o fato de que movimentos minoritários e de resistência não estão livres de serem subsumidos pela lógica capitalista, que não precisa de nenhum tipo de norma para existir, e muito pelo contrário, se beneficia imensamente da ausência de normas.

 

Podemos citar como um exemplo deste risco, todo o promissor mercado que se abre a partir das intervenções da ciência e da técnica em sua vertente francamente biopolítica: promessas de transformação e adequação dos corpos ao gosto de cada qual, tema amplamente discutido por Paula Sibilia (2002) em O homem pós-orgânico: corpo, subjetividade e tecnologias digitais. As transformações desencadeadas a partir da Segunda Guerra Mundial, junto com o desenvolvimento acelerado das tecnologias informáticas, das telecomunicações e das biotecnologias, resultam em mudanças profundas no tecido social, político e econômico global, subvertendo a antiga lógica disciplinar, e constituindo outros tipos de dispositivos e de formações sociais no seio das chamadas “sociedades de controle”.

 

Vale evocar ainda alguns pontos cruciais do artigo “Homogeneidade e exceção”, de Newton Bignoto (2012, p.63-74). Parece-me especialmente interessante situar o modo preciso através do qual o autor localiza uma espécie de cisão entre a política clássica, sob os auspícios das diferentes figuras da exceção – encarnadas no mundo grego pela figura do legislador, na Idade Média pela figura do Rei, e na modernidade pelo soberano –, e o traço homogeneizador da cultura contemporânea, efetivado basicamente pelo consumo como um fim em si mesmo.

 

Para Bignoto (2012), uma das tarefas essenciais do pensamento em nossos dias é desvelar o que se esconde por trás das máscaras e bandeiras da homogeneidade, que é completamente diferente de uma busca por garantias de igualdade no campo dos direitos humanos, por exemplo. Disfarçada de luta pela igualdade, principalmente de luta pela igualdade no plano do consumo, a homogeneidade esconderia sua verdadeira causa, e os perigos que engendra, ao se transmutar em instrumento de morte da política. Nas sociedades de massas consumidoras quem manda é o corpo biológico, que aparece como ponto final do processo de institucionalização da vida em comum e mola propulsora da conversão da política em biopolítica. Bem afeito ao paradigma do mercado e ao novo universalismo capitalista, o corpo humano se converte, ele próprio, em mercadoria. O mercado passa a habilitar tudo, de maneira infinita. A biopolítica contemporânea já não é aquela dos estados-nação, mas uma biopolítica de mercado, sustentada pelas grandes corporações, especialmente pelas indústrias farmacêuticas e de alta tecnologia, que agem, sobretudo, em nome da proteção de seus interesses financeiros. Os usos e abusos da vida, e sua repentina reversão em morte, parecem tomar a dianteira novamente, em detrimento de sua defesa e proteção.

Neste estado de coisas caberá interrogar até que ponto se convoca a crença na ciência para resolver o que em psicanálise chamamos de impossível encontro com o outro gozo em sua alteridade radical, pois diante deste encontro, sempre traumático, não há garantia possível. A anatomia não é e nem jamais será o destino, fundamentalmente, em virtude de a linguagem retirar, de uma vez por todas e para todo o sempre, o sexo do campo da natureza.

 

Naquilo que concerne à clínica propriamente dita, minha aposta é que o a clínica psicanalítica seja o espaço, por princípio, da singularidade e da contingência. Na sessão analítica, assim como nas artes e seus múltiplos dispositivos, é possível dar lugart à contingência como princípio radical de orientação, e do qual não podemos abrir mão. É, por isso, um lugar para alojar o indecidível, ou seja, aquilo que constitui o lugar vazio que opera no centro de toda e qualquer decisão, e aquilo que nenhum protocolo jamais poderá garantir ou prever.

Acredito também, que só teríamos a perder, se, em nome de uma leitura apressada, jogássemos por terra as referências da clínica. Mas faz-se urgente não incorrer na saída fácil e inadvertida da patologização: seja centrando a discussão em categorias diagnósticas, e perdendo, assim, a dimensão do arranjo singular que cada sujeito poderá constituir para si, ao lidar com aquilo que o excede e mortifica, seja fixando relações de necessidade onde, por princípio, caberia melhor a noção de contingência.

 

O diagnóstico em psicanálise não tem como referência a patologia nem a ontologia. Na chamada clínica descontinuísta, fala-se de estruturas clínicas e não de doenças, transtornos ou patologias. Na clínica continuísta os parâmetros são ainda outros: o sinthoma, os modos de gozo, o acontecimento de corpo e os arranjos singulares. É preciso colocar, urgentemente, um intervalo vazio aí, e dar primazia aos usos que cada um fará do dispositivo analítico e de suas possibilidades discursivas e inventivas, e também da transferência, como meios de constituir seus diferentes arranjos, destinos, saídas, para o sofrimento que eventualmente possa estar em jogo no momento em que busca uma análise.

 

O que aprendi com a clínica, é que o link entre determinado diagnóstico, seja ele qual for, e o falasser em sua radical singularidade, não será jamais um link necessário, do tipo se x então y, mas um link absolutamente contingente. O que estará em primeiro plano na experiência analítica são as soluções das quais o sujeito poderá lançar mão, suas invenções, no sentido de invento mesmo, de criação, de algo que não estava dado no início, isso que poderá se constituir, sob transferência, para lidar com os impasses relativos ao próprio corpo (falante) e seu modo singular de gozo.

 

*EBP/AMP

 

Referências bibliográficas:

 

Alemán, J. Entrevista a Jorge Alemán, 2014. Disponível em: http://jornadaselp.com/2014/10/entrevista-a-jorge-aleman/. Acesso em 02/04/2015.

 

_____. Existencia y diferencia sexual: Foucault y el “construccionismo”. In: Ornicar Digital. Disponível em: http://wapol.org/ornicar/articles/220ale.htm. Acesso em 03/04/2015.

 

Ansermet, F.Eligirel sexo. In: Tiresias: Publicación de las 13ª Jornadas de laEscuela Lacaniana de Psicoanálisis. Madrid: dic., 2014. Disponível em: http://jornadaselp.com/2014/11/elegir-el-sexo/. Acesso em: 03/04/2015.

 

Bignotto, N. Homogeneidade e exceção. In: Revista Curinga. Belo Horizonte: EBP-MG, n.35, dez. 2012, p.63-74.

 

Sibilia, P. O homem pós-orgânico: corpo, subjetividade e tecnologias digitais. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

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