RASTROS DEIXADOS PELA PASSAGEM (DO CORPO) DE MARINA ABRAMOVIC POR SÃO PAULO
Fabiola Ramon (correspondente da Seção São Paulo da EBP)
“Na ocasião de minha morte eu gostaria de receber
a seguinte cerimônia em minha homenagem: três ataúdes.
O primeiro ataúde com o meu corpo real.
O segundo ataúde com uma imitação de meu corpo.
O terceiro ataúde com uma imitação do meu corpo. [...]
Após a cerimônia, haverá um banquete com um grande
bolo feito de marzipã, na forma e aparência do meu corpo.
Quero que o bolo seja distribuído para as pessoas presentes ”
(Marina Abramovic. In: Quando Marina Abramovic Morrer)
A exposição Terra Comunal – Marina Abramovic + MAI ocupou completamente o SESC Pompeia, em São Paulo, de março a maio deste ano. Além de uma retrospectiva com obras seminais da carreira da artista, incluindo instalações, objetos, retratos, vídeos e pôsteres, a exposição contou também com uma proposta extremamente inventiva denominada Terra Comunal MAI – do Instituto Marina Abramovic. Houve performances com oito artistas selecionados especialmente para a mostra, encontros presenciais com Marina Abramovic e a apresentação e disponibilização ao público do “Método Marina Abramovic”, tentativa da artista de transmitir algo de sua relação de corpo com os objetos, um dos pontos centrais de suas performances, e reinventar linguagens artísticas e escrituras feitas a partir do corpo.
Marina Abramovic, tida como a “Rainha da arte performática”, é uma das artistas contemporâneas mais conhecidas e respeitadas da atualidade. O campo da performance tem como alicerce o corpo como suporte para a criação artística.
O poder e a eficácia do nome “Marina Abramovic” produz efeitos nos corpos daqueles que circulam por entre suas obras e nas cidades por onde passa. Em Nova York, por exemplo, Marina pulsa como figura latente no campo da arte, mesmo quando não está em nenhuma mostra ou exposição da cidade.
O corpo é plataforma artística para Marina e Marina é experiência de corpo. Corpo da obra que convoca o corpo de cada um que se prontifica a olhar e experimentar o que a artista enlaça no campo da
arte. Corpo de artista que faz diversos usos do seu próprio corpo para desvesti-lo da imagem e fazê-lo suporte Da Coisa. O corpo de seus 45 anos de trabalho eleva o corpo de Marina à própria dignidade Da Coisa.
Lançar-se em uma experiência proposta por Marina nas instalações e performances nas quais os espectadores são convidados a participar é, de certa maneira, navegar em um campo opaco que desarticula o sentido (e os sentidos perceptivos) e o Eu. Dificilmente, se sai de uma de suas invenções sem a sensação de se ter despertado de um sonho, aquele momento de hiância em que o sujeito está apartado da representação, mas que, em seguida, a partir de certa temporalidade, se reconstitui como tal. Se houver permissão do sujeito, ele pode lançar-se em um terreno de desapropriação da imagem do corpo e se afetar por isso.
A obra “A artista está presente” abria a exposição. Trata-se de uma instalação que resultou de performance realizada em 2010, no MOMA (NY), em que ela ficou sentada em uma cadeira, imóvel e em silêncio, convidando os visitantes a sentarem-se à sua frente e a manter contato visual, sem limite de tempo. Na instalação montada no SESC, foram apresentados, de um lado, dezenas de vídeos com cenas do olhar de Marina e, do outro lado, vídeos com os olhos e a face dos visitantes que participaram da experiência, assim como na performance em presença física. No meio, entre as duas paredes com os vídeos, estavam as cadeiras e a mesa que foram usadas na performance em 2010. Mais um componente foi agregado nessa derivação da performance inicial: o espectador que circulava por entre as duas paredes e os olhares intensos de Marina e dos participantes dos vídeos. Permanecer ali, no meio da instalação, incluído como corpo naquele local onde o que se via primeiramente eram vários olhos, aos poucos vai conduzindo o espectador para dentro da cena e esta vai tomando outras nuances, a ponto de os olhos projetados nos vídeos irem se transformando em Olhares e, o espectador, em objeto afetado pelo Olhar. Olhares que desnudam os corpos que se incluem, fazendo cair a vestimenta do olho que acredita tudo ver.
“Experimentar Marina” não se trata de pura experiência de gozo com a polissemia semântica produzida por uma criação artística, característica marcante de muitas obras contemporâneas ou dos efeitos que algumas obras enigmáticas impactantes produzem quando convidam o sujeito a construir a sua própria forma de velar o horror. Marina vai além, suas obras deixam um resto sem localização, que captura e desestabiliza o corpo de cada falasser.
Sai-se de lá com um pedaço, mais que um traço, um rastro da escritura dessa artista, sai-se de lá com a impressão de que se levou para casa uma parte de seu próprio corpo. É a isso mesmo que a artista se dá!