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LETRA ENCARNADA

Maria Fátima Pinheiro*

Silvia Salman (2011) apresenta em seu depoimento "El mistério del cuerpo que habla”, a experiência da análise como uma experiência de corpo, em que o significante não se encontra remetido somente à estrutura da linguagem mas está, de acordo com o ensino de Lacan, enganchado ao corpo.

 

Em seu testemunho revela que manteve com o seu corpo uma relação de inquietante “estrangeirice”, denotando o que Lacan (1975) situa, a partir de Joyce, que o parlêtre tem um corpo e não é um corpo. Isto indica um afeto que não se reduz a um efeito de sentido, uma vez que o fato de ter um corpo não implica que o sujeito se faça representar por um significante em relação a outro significante. Este é o motivo pelo qual cada um terá que dar conta de alojar o corpo dentro do discurso, ponto que a psicanálise opera e que o testemunho de Silvia Salman ensina.

Um corpo à deriva, marcado por uma anorexia na tenra infância, anuncia algo enigmático do desejo da mãe, deixando-a susceptível de padecer ao gozo materno. Corpo que só pôde recuperar a sua potência a partir do significante paterno “desenho animado” quando se dá o enlace do corpo com a palavra, vivificando o corpo a partir da nomeação. Nesse tempo, recorta-se o objeto olhar, a partir do horizonte descoberto pelo pai, além de circunscrever três elementos fundamentais referentes ao significante “desenho animado”: o vivo do corpo em contraponto ao mortífero da anorexia, o corpo que escapole, tal qual um desenho, e um corpo nomeado na forma masculina, excluindo um corpo de mulher.

 

A gramática pulsional flexionada pelo “objeto olhar” fixa a posição subjetiva: “sentir-me agarrada pelo olhar do outro” declina-se na direção de “fazer-me agarrar pelo Outro” enodando sintoma e fantasia, sendo desvelada por uma interpretação do analista, em ato, que enunciou: “Você me provoca isso” agarrando-a. O ato do analista, segundo Éric Laurent, de agarrar para deixá-la ir, encaminhou-a na direção da separação na transferência. No último tempo da análise, “um sonho solta” um último significante: encarnada. Significante novo, fora da cadeia, que ao trazer a marca do significante desanimado, introduz a evidência, não do encontro com “um” significante, mas a do encontro com a letra, efeito do desânimo das identificações com o Outro, em que “encarnada”, como avesso do “desenho animado”, concentra o corpo, o vivo e o feminino.

 

O enlace do corpo, do vivo e do feminino mostra a articulação do simbólico com a vertente real ligada à experiência da análise. Esta questão remete ao sintoma como acontecimento de corpo, que segundo Miller (2002), denota que nem tudo pode ser reabsorvido pelo simbólico.

 

A transmissão que Salman realiza a partir de sua experiência de análise, evidencia a relação do corpo com o significante, não só em relação à imagem, mas quanto à própria carne do que é vivo. Lacan (1972) afirma que o afeto, como efeito corporal do significante, não tem a ver com os efeitos semânticos ligados ao significado, mas aos seus efeitos de gozo. A partir deste ponto, Miller diferencia a estrutura da significantização, da estrutura da corporização: na primeira a necessidade do corpo passa pelo significante, pela demanda, e a segunda trata de corporizar a dialética do sujeito e o Outro através do afeto, que é o gozo. Isto remete à carta roubada que, ao chegar ao seu destino, faz com que o sujeito receba a sua mensagem de forma invertida, o seu próprio gozo, sem por em causa o funcionamento simbólico. Encarnada é a letra que passeia sozinha, sem o Outro, e como a carta roubada, não funciona como unidade de sentido ligado ao significado, mas como algo que produz efeitos.

 

* Membro da EBP/AMP

 

NOTAS

Núcleo de Topologia do ICP-RJ

E-mail: fatimapinheiro@globo.com

End: R. Professor Saldanha 125- casa 1- Lagoa- Rio

Referências Bibliográficas:

Lacan, J. O seminário, livro 20: Mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.

Lacan, J. O seminário, livro 23: O Sinthoma (1975-1976). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.

Miller, J. A. Biología Lacaniana y acontecimento del cuerpo. Buenos Aires: Colección Diva, 2002.

Salman, S. “El mistério del cuerpo que habla. In: Latusa v.1. n.1 (nov de 1997). Rio de Janeiro: Escola Brasileira de Psicanálise Seção Rio, número 16, outubro de 2011.

 

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