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UM CORPO DE MULHER, DA IMAGEM AO GOZO

Heloisa Caldas (AME - EBP-AMP)

 

Agradeço muito ao Diretor da EBP-SP, Rômulo Ferreira da Silva, por este convite, assim como aos colegas aqui presentes, pela atenção.

 

O título que me foi proposto – corpo de mulher – me deixou, a princípio, muito alegre. Não poderia dizer o porquê, mas parecia tão simples falar disso. Mas a ilusão de que não seria difícil tratar do assunto, durou poucos minutos. Em seguida, angustiada, sinal de que meu corpo é sensível ao enigma do desejo do Outro, acalmei-me com as indicações bastante conhecidas de Freud e Lacan sobre a mulher: “O que quer uma mulher?”, pergunta um, na aurora da luta feminista do século; “A mulher não existe”, declara o outro, acirrando mais ainda o debate. 

IImagem de THAIS ORSI

Isso me deu certo alívio. É sobre algo que não se sabe que tenho que falar. Logo, será apenas uma fala ficção, uma invenção, pois não se pode dizer o feminino, o que não se sabe, mas tocar nisso pelas bordas.

 

A partir do que disse Simone de Beauvoir, inspirada pela psicanálise(1), “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”(2), proponho dizer, com relação ao corpo, que o corpo de mulher não existe, inventa-se um. Esta ideia me acalmou e pude passar a construir uma fala sobre as invenções do corpo que talvez permita até pensar que o corpo que interessa à psicanálise é sempre, no final das contas, um corpo de mulher, desde que possamos separar o termo mulher da noção de gênero, para estendê-lo ao feminino que contrasta com o saber e o poder dos discursos fálicos. 

 

O gênero pretende distinguir o corpo da mulher. Seja de forma mais clássica pela diferença anatômica, seja de forma mais contemporânea pelas diversas manifestações discursivas que tecem o lugar e os papeis sociais da mulher. De fato, o corpo pode ser considerado a partir dos discursos, desde os discursos do mestre mais antigos, aos discursos contemporâneos do mestre capitalista, temos diferentes corpos a depender das forças políticas do saber: o corpo no campo das políticas sociais, da saúde, do direito, da moda, da religião, do comércio. Daí advêm inúmeras possibilidades: o corpo protegido, tratado, medicado, transplantado, transexualizado, drogado, agredido, abusado, violentado, torturado, aprisionado, desaparecido, sequestrado, prostituído, incluído, segregado, legitimado ou não quanto à prática sexual, à parentalidade, à procriação, etc. Poderíamos seguir infinitamente com essa lista.

 

As teorias de gênero têm tido papel relevante em destacar como os discursos sexistas se apoderam dos corpos e determinam seus lugares, privilégios, restrições, etc. Com seus argumentos, deram esteio ao movimento feminista que pretende mudar este discurso com políticas de empoderamento das mulheres que evitem deixá-las à mercê da sua apoderação como objeto dos discursos sexistas dominantes.

A perspectiva da psicanálise não se contrapõe a isso, mas vai adiante das perspectivas de gênero sobre o corpo porque não o toma apenas em seus aspectos discursivos. Os discursos têm um papel relevante, mas não podemos tributar a questão apenas a eles. A sexuação não é mera questão de semblantes. É preciso situar no corpo o avesso dos semblantes, mesmo quando os semblantes de mulher gozam de relativa liberdade, como no mundo ocidental globalizado. No avesso dos semblantes, há o que chamamos real do corpo e que, grosso modo, equivale a apontar que a linguagem tem limites para tratar do sexo e da morte. Dois aspectos que se manifestam pela fruição da vida no corpo e também pela experiência de morte – seja como horizonte, seja no dia a dia das perdas – são manifestações que escapam ao sentido e que nenhuma narrativa ou nenhum discurso esgotam.

 

Foi o mistério do corpo vivo e paradoxal que causou o nascimento da psicanálise, quando as histéricas levaram Freud a constatar que o corpo era mais que um órganon, uma ferramenta ou instrumento. Ao dar-lhes escuta e um novo olhar clínico, Freud enfrentou a radicalidade do dualismo entre psíquico e somático da concepção médica de organismo que excluí o sujeito, e torna o corpo um objeto orgânico. Na contramão disso, ele propôs que a linguagem, atividade princeps da subjetividade, atravessa o organismo, fazendo da máquina um corpo erógeno.

Imagem de THAIS ORSI

Sabemos que o corpo que fala, verificado por Freud ao tratar das histéricas, não equivale exatamente ao que Lacan, no final do seu ensino, veio a chamar de falasser ou corpo falante, como Miller preferiu chamar, na pesquisa atual da AMP (3). Mas vale sublinhar que Freud teorizou o inconsciente a partir da fala de suas pacientes e que Lacan inventou o termo falasser para dar um nome seu, lacaniano, àquilo que Freud chamou de inconsciente (4).

 

Este é, a meu ver, um paralelo precioso, ainda que o falasser não seja exatamente o mesmo que o conceito de inconsciente freudiano, uma vez que Lacan deu tantas voltas ao seu redor e o conceito mudou tanto que, por fim, precisou ser rebatizado. Mas, inegavelmente, a articulação entre linguagem e corpo está presente, constitutivamente, nos dois conceitos, cada uma à sua maneira.   Se   a    linguagem do inconsciente  freudiano 

 

apontava à verdade recalcada relativa a uma experiência corporal traumática, o corpo falante lacaniano responde à inexistência da verdade absoluta e ao fracasso da linguagem em dizer o real. Para ambos, no entanto, só há corpo em função da linguagem. Corpo trauma em Freud e corpo real em Lacan.

 

Nessa direção, o corpo de mulher freudiano tem forte proximidade com o corpo do trauma e o corpo lacaniano com a verdade mentirosa que se possa tecer a partir disso. Em Freud, o feminino está presente no corpo seja repudiado, seja na forma de penisneid (5). Com Lacan, o feminino se aproxima do registro do real e o corpo se constitui como semblante de um furo que a linguagem contorna, mas não obtura. 

 

O corpo em psicanálise nasce, então, como efeito de linguagem, e interessa não pelo seu funcionamento de manutenção da vida, mas, e nisso reside a força da subversão teórica da psicanálise, de fruição da vida. O corpo erógeno, dos desejos e da pulsão, da sexuação, do bem e do mal-estar, o corpo de gozo, que a psicanálise investiga e trata, é desligado das funções e das demandas necessárias à sobrevivência. Quanto a isso, o corpo feminino não se reduz ao corpo reprodutor, ainda que sejam apenas as mulheres, por enquanto, que podem emprestar seu corpo a isso.

 

Sabemos que a mãe foi, para Freud, uma resposta possível para o que quer uma mulher, mas o mero fato de que a criança tenha nisso um valor de substituto do falo já mostra algo distinto da mera procriação. Atento a isso, Lacan frisou que o corpo reprodutor da maternidade não é paradigma de corpo de mulher. Isso não quer dizer, no entanto, que muito do corpo de uma mulher não participe disso, desde a entrada na comédia dos sexos que acende o desejo, até o ato sexual, o que por acréscimo, e com relativa frequência, promove uma fecundação.

 

Com relação à maternidade, o corpo da mulher é aquele passível de suportar a revolução especular que uma gravidez implica valendo-se das imagens, sempre precárias, à disposição para viver isso; suporta, ainda, a separação de um pedaço de si no parto para cuidar da criança, corpo a corpo, nos mal-entendidos da maternagem. Nada disso, no entanto, testemunha a imagem ilusória de completude que faria da mãe uma mulher satisfeita. Ao contrário, uma mulher, no sentido estrito dado por Lacan ao termo, pode ser localizada através da assimetria, da disparidade, da não relação entre a mãe e a criança, que a imagem da Madona com seu menino nos braços enganosamente vela. 

 

O princípio lacaniano da inexistência da relação sexual diz respeito a todas as modalidades de parceria em que temos a presença do sexual. A parceria da mãe com a criança é dessa natureza e tem de especial o fato de que nela se experimenta, pela primeira vez, o encontro com o sexual e com uma primeira escrita, uma prescrição, da não relação sexual. O interdito do incesto escreve a não relação na parceria  mãe/criança, dando  um tratamento  narrativo e  cultural ao  fato.  É da escrita  do  interdito  do 

incesto, de valor universal, que se depreende uma escrita contingencial no corpo dos sujeitos, segundo a forma como cada um vive o Édipo que funda sua identificação e, em especial, sua modalidade de gozo relativa a esta identificação fálica e o que dela sobra, ultrapassando a operação do Édipo. Temos o gozo fálico, edípico, e um Outro gozo que sobra dele. Essas duas modalidades de gozo permitem distinguir um gozo de lógica masculina e outro que Lacan atribuiu ao campo das mulheres, na medida em que estas escapam à identificação (6).

 

Com a leitura do gozo fálico, o corpo da mulher desenha-se a partir do interdito. Derivado da

re você.

lei do incesto, o interdito poderia ser uma espécie de remédio genérico que vacina os sujeitos para a não relação sexual que se repetirá inexoravelmente em suas vidas. No entanto, funciona como um pharmacon, porque ao fundar a lei traz a reboque o gosto pelo elixir do diabo, o desejo de transgressão. Nesta leitura, o corpo feminino pode ser sagrado, o que não se pode tocar, ou profano, na medida em que a interdição convida à transgressão. Esse é um desenvolvimento bastante interessante de Bataille (7), na concepção do erotismo, que tem suas raízes nas figuras discutidas por Freud da mãe, da Dirne e da virgem nos textos sobre a vida amorosa (8). 

 

Encontramos na cultura exemplos variados do corpo feminino como tabu: a burca afegã, o véu islâmico, a abstinência sexual durante a menstruação ou gravidez, etc. A pornografia, na contramão do tabu, desnuda cruamente o corpo. Pode servir de disparador erótico para muitos sujeitos, mas para outros, pelo que desliza do corpo à carne, pode ter um efeito contrário.

 

A leitura de Lacan, nas fórmulas da sexuação, permite a leitura dessa lógica fálica, mas também do que a ela escapa. Como A mulher não existe, aceder a ela de forma total é impossível. Não se trata apenas da interdição ao corpo que a religião cultural impõe e a transgressão, por vezes pornográfica, subverte. Trata-se da impossibilidade de acesso àquilo que não existe como regra, mas apenas como circunstância eventual. O homem que seria exceção de tal impossibilidade, aquele que poderia gozar de todo e qualquer corpo, inclusive o da mãe, tem uma função, nas fórmulas de Lacan, meramente lógica. Trata-se de uma exceção que funda o conjunto, como um conjunto vazio inerente a qualquer conjunto. Na prática, ninguém ocupa este lugar. Esta lei implica, na passagem da impotência à impossibilidade, efetuada pela teorização de Lacan, algo mais sinistro, como dizem os jovens. Não se trata apenas de não se ter acesso aos corpos interditados. Pior que isso, trata-se da impossibilidade de acesso subjetivo ao corpo feminino como tal: corpo de gozo Outro. Então o corpo feminino é inacessível ao saber, o que Lacan ilustra com a dama do amor cortês (9) e posteriormente demonstra a partir do paradoxo do infinito de Zenão na corrida de Aquiles e a tartaruga (10). Algo se alcança, porém, jamais tudo, menos ainda em um ponto exato de complementaridade. O que se alcança são migalhas, pedaços, miragens do corpo. Nisso reside seu mistério, seu eterno caráter de Outra Coisa, de outridade (11), termo que Marie-Hélène Brousse usou recentemente, inclusive para as mulheres mesmas, pois o feminino que lhes habita o corpo é experimentado com estranheza.

 

Como estamos trabalhando também o tema do próximo ENAPOL – O império das imagens – gostaria de situar o corpo em função do olhar.

 

O primeiro tratamento dado por Lacan ao corpo, no estádio do espelho, já destacava a perspectiva imaginária submetida ao simbólico para dar uma unidade ao plano caótico e disjunto do real das pulsões (12). O especular implica o campo do olhar. Laurent destaca, ao comentar este texto no curso de Jacques-Alan Miller (13), o tratamento dado à identificação pela leitura lacaniana do narcisismo freudiano: o corpo especular dá unidade ao que se encontra disjunto nas pulsões parciais. Ele ressalta também outro aspecto, diverso da identificação, que tem valor desde então, além do narcisismo e do especular que se depreende do real das pulsões parciais subjacentes ao cenário do estádio do espelho. Nas pulsões podemos encontrar as raízes do que ultrapassa o narcisismo girando em torno das bordas erógenas e dos objetos. Além do campo especular, encontramos o campo escópico do pulsional, propriamente dito.

E O corpo imagem obviamente se presta à identificação narcisista. E as mulheres se preocupam muito com a imagem porque afinal é no espelho do olhar do Outro que elas têm alguma chance de receber uma identificação. Tanto melhor se for a identificação de única amada, o que lhes confere um ser no vazio significante dA mulher. No entanto, além deste narcisismo que não se sustenta, sabemos bem disso, há o corpo furado pelas bordas de onde derivam as pulsões. Corpo bolha, perfurado pelas bordas, como Laurent o chama (14).

 

Assim, na contra face do corpo imagem, semblante, esconde-se o corpo vazio que acolhe identificações sempre substitutivas da falta de representação. Não por acaso, a angústia experimentada no corpo, sinal do real que não engana, indica o desconhecimento radical que atravessa o corpo imagem do narcisismo diante do fracasso das identificações. O corpo da angústia é um corpo feminino no sentido de que atesta tal fracasso. Mas ele pode ser também outra coisa, porque restam as bordas e os objetos que delas se separam que, mesmo sem nome ou imagem, pois os objetos não são especularizáveis, transportam pelo corpo a alquimia do sexo. Eles abrem as vias de acesso ao gozo real, o gozo sem eira nem beira, louco, digamos assim. Esse é o corpo feminino alquímico, um corpo para gozar. 

 

Curiosamente, não é exatamente gozar dele como corpo de outra pessoa, mas gozar do seu próprio corpo, o que pode se dar através do corpo de outra pessoa.

 

Vejamos, então, como se passa de um corpo imagem a um corpo de gozo. Para uma mulher, que padece da falta de uma identificação simbólica, o corpo imagem é um recurso valioso. O corpo feminino é, sobretudo, um corpo para olhar e, como o da criança no estádio do espelho, parece que ela depende muito do olhar do Outro para o qual não se poupa em se fazer olhar. Freud apontava ao narcisismo das mulheres comparando-as aos gatos. Rainhas de si mesmas, desfilam no campo do olhar do Outro, para se fazerem amar. Podem ser olhadas como Gestalt.

 

Há toda sorte de receitas sobre a boa forma do corpo da mulher, no entanto, o que melhor desperta o desejo e propicia tomar este corpo como corpo de gozo, não é sua forma total, mas seus pedacinhos.

A pinta próxima aos lábios, que fez tanto sucesso no século passado, ou o piercing da atualidade, entre outros inúmeros exemplos, ilustram como o corpo de uma mulher entra no campo do olhar mais em função da valorização metonímica do detalhe, do que da metáfora que pudesse lhe atribuir um sentido global. Esses pequenos e divinos detalhes nos ensinam que o corpo é menos sua imagem forma do que sua imagem bolha, na qual os furos importam. A imagem forma reveste o corpo saco, vazio, promovendo uma identificação simbólica; já o corpo bolha remete aos pequenos objetos, enformes (15), que podem suscitar o gozo libidinal e parcial das bordas do corpo.

 

O corpo atraente vale então pelo objeto a que nele brilha e ofusca. Objeto a produzido pelo que as palavras fazem da carne corpo, adjetivado por Lacan também de semblante. No caso do olhar, está situado na imagem no ponto limite em que o olhar se detém na mancha. Este pode ser o ponto P em que a pinta/piercing, como semblante, ganha estatuto de letra: perde o sentido, mas abre um sulco no corpo pelo qual o real do gozo escorre. Rola uma química, dizem os jovens. Não a química fisiológica, mas aquela mais próxima, talvez, das fórmulas alquímicas da magia. Enfim... além do campo do saber, um gozo.

Outro aspecto interessante é que P sustenta com o corpo uma extimidade de mão dupla. P está no corpo dela, mas tem efeitos no corpo do parceiro, faz sintoma para ele, pois catalisa seu desejo; os efeitos de P que acendem o desejo, no corpo dele, produzem efeitos de desejo no corpo dela, fazem sintoma para ela. E mais ainda: os efeitos de P, no corpo dela mesma, são experimentados como se este fora outro. A extimidade pode ser lida de muitas maneiras no campo escópico da pulsão. Uma mulher precisa então se pensar fora de si, ser Outra para si mesma, apoiando-se no homem como um relais, para alcançar algo de seu gozo.

 

Vemos assim que se pode encontrar P no corpo como causa de gozo fálico e convite à repetição. Como senha do gozo fálico, P é uma imagem fetiche e como tal provoca a repetição do mesmo.

 

Mas será só isso?

 

Seria possível aventar que o olhar permite ultrapassar o gozo fálico, abrindo uma via de acesso ao gozo Outro. Ainda que para alguns baste o gozo fálico, ultrapassá-lo permitiria que se recuperasse, em um regime de reiteração em vez de repetição, um encontro inédito com o gozo. Nesse caso, a imagem seria menos um centro para o olhar, do que um ponto de fuga para um gozo descentrado. Nesse sentido, P abre um leque de gozo que pode exceder sua localização em P.

 

O deslumbramento de Lol V Stein foi um dos exemplos de gozo feminino dado por Lacan, a partir do livro de Marguerite Duras (16). Um gozo arrebatava Lol: olhar como uma mulher se faz olhar. Ela gozava de ver a cena do casal, no início do ato sexual, em que o corpo feminino era despido. Ela gozava de olhar o olhar, do qual fora privada, do qual se mantinha ausente, descentrada, fora da cena. 

 

Isso ensina também sobre a relevância da entrada do gozo sexual pela via do olhar. Certamente, a voz tem papel relevante nisso, assim como o toque, entre outros. Mas entre as pulsões parciais, o olhar parece manter um lugar privilegiado, inaugural, talvez porque tenha tanta importância na experiência da constituição do corpo como unidade no estádio do espelho. O corpo da mulher evocaria o segredo do corpo que se compõe uno a partir do caos, mas que repousa sobre a variedade do pulsional. A partir do olhar podemos também   decliná-lo   pelas  outras bordas erógenas: o que se faz ouvir, tocar, 

cheirar, com manifestações diversas que também são de imagem: sonora, táctil, olfativa. Imagens pelas quais o corpo pode ser de gozo, como as histéricas ensinaram a Freud.

 

Aliás, os sintomas histéricos defendem as mulheres de como seus corpos poderiam ser sintoma para os homens, ao tomá-las como objetos. Elas constroem os cenários perversos dos quais gozam pela renúncia, pela aversão, pela abjeção. Buscando evitar o corpo objeto, a histeria o trata como abjeto. O que não a livra dele.

 

O objeto tem um lugar estrutural e foi reduzido por Lacan à fórmula da fantasia, que ele situa, nas fórmulas da sexuação, entre o lado fálico e o lado Outro, o lado mulher (17). O objeto está grampeado à lógica fálica, mas, ao mesmo tempo, ao ser ultrapassado, permite escapar desta lógica. Para isso, precisamos nos valer das setas que, do lado Outro, conectam uma mulher ao falo e também ao matema de S (   ). Se o gozo fálico extrai suas coordenadas pela via da fantasia, o gozo feminino vincula-se ao que do Outro não tem nenhuma coordenação. O arrebatamento se dá, justamente, pelo que a fantasia não dá conta do gozo através do falo. Daí se pode deslizar para um gozo indomesticável, descentrado, indefinido que pode estar do lado do deslumbramento ou da devastação, duas manifestações femininas de gozo dirigidas à inconsistência do Outro e que ultrapassam a cifração do gozo fálico.

 

Proponho concluir com uma questão: seria o corpo de mulher aquele que suscita libido, promove a mágica do desejo e permite decantar um gozo? Seria um corpo que tira o parceiro do sério, possibilitando que ele aceda a algo de um gozo suplementar ao gozo fetichista que ele obtém na série monótona de sua fantasia? Seria aquele que provoca um acontecimento de gozo louco?

 

A partir do debate que tivemos após minha fala, tomei a liberdade de acrescentar algo mais no texto. Isso se deve à intervenção de Luiz Fernando Carrijo ao me perguntar como eu poderia situar o que falara com relação aos testemunhos dos AEs da Escola. Ao colocar a questão, comenta algo em função do que falei, como só um AE pode fazer. Ele diz: é preciso uma torção para que o ponto P passe da fixidez da fantasia para um consentimento ao gozo feminino no corpo. Sintetizou assim, em uma simples frase, o segredo do corpo feminino e do acesso ao seu gozo.

 

Voltei ao Rio tocada por esta transmissão e, por conta disso, me atrevo a fazer um pequeno comentário sobre o primeiro testemunho de Passe de Luiz Fernando que ouvimos em Salvador, por ocasião do Congresso da EBP em abril deste ano.

 

Tudo se passa em volta do olhar. O menino pudera capturar no olhar da mãe seu gozo como signo de amor materno. Amor que pode quase tudo, como dizemos popularmente, mas que sabemos ser não todo. Em seu caso, este olhar permitiu anestesiar a dor da mordida do macaco, mas, por outro lado, lhe fechou as portas para a inconsistência do Outro. Em dívida eterna pelo amor da mãe, o menino precisa colocar uma sombra fóbica entre este olhar e o Outro gozo experimentado por ele, no incidente traumático, e transmitido por ela como sofrimento. A fobia à chuva, indicativa do corpo estranho da mulher na mãe, e a experiência em que nada vê, quando procura o desejo do pai pelo Outro sexo olhando pela fresta a casa noturna, tornam-se manchas que impedem seu acesso a este Outro gozo. O ponto P é obstáculo, a serviço da fixidez de uma fantasia. Foi somente a partir da análise do ‘não’ que, em vez de ‘mergulhar na escuridão da mancha’ para se defender do que não se sabe, ele pode alcançar este ponto de torção. O gozo Outro perde sua aura de dor, podia ser Outra coisa. A crença na fantasia se esfumaça. Talvez aí resida a torção: desacreditar! O sonho do imenso cavalo que destruiria o telhado e desaparece, seguido pela nuvem branca e imensa que afinal chove sobre todos, mas é apenas um vapor, aponta a essa torção: não havia ali nada a olhar, apenas uma satisfação Outra; não mais uma dor a ser eternamente anestesiada. Ele passou do gozo amarrado ao ponto P para um gozo inconsistente, sem pontos de referência, sem manchas. Eis um passe que nos oferece um singular exemplo do corpo feminino e seu gozo independente da anatomia e mais ainda do que se chama de gênero.

 

NOTAS

(1) Freud, S. (1933/2012) A feminilidade. Conferência 33. Em: O feminino que acontece no corpo. A prática da psicanálise nos confins do simbólico. Belo-Horizonte: EBP e Scriptum, p. 28.

(2) Beauvoir, S. (1967) O segundo sexo. São Paulo: Difusão europeia do livro, p. 9.

(3) Miller, J-A. (2014) O inconsciente e o corpo falante. Conferência pronunciada em 17 de abril de 2014 para apresentar o tema do X Congresso da AMP, no Rio, em 2016. Disponível em: http://www.wapol.org/pt/articulos/TemplateImpresion.asp?intPublicacion=13&intEdicion=9&intIdiomaPublicacion=9&intArticulo=2745&intIdiomaArticulo=9. Acesso em: 01/05/2015.

(4) Lacan, J. O seminário, livro 23: Joyce, O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, p.55.

(5) Freud, S. (1937/1969). Análise terminável e interminável. Edição Standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. XXIII. Rio de Janeiro: Imago, pp.247-290.

(6) Lacan, J. (1973-1974/ 1985) O seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor.

(7) Bataille, G. (2013) O erotismo. Belo- Horizonte: Autêntica.

(8) Freud, S. Contribuições à psicologia do amor. Edição Standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. XI. Rio de Janeiro: Imago, pp.149-195.

(9) Lacan, J. (1959-1960/1988) O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor.

(10) Lacan, J. (1973-1974/ 1985) O seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor.

(11) Brousse, M-H. (2014) “Le mystère de sa propre féminité, sa féminité corporelle…” Editorial da Révue de Psychanalyse La Cause du désir, n. 89: Les corpos de femmes. Paris: École de la cause freudienne – ECF, p.6.

(12) Lacan, J. (1937/1998) O estádio do espelho como formador da função do eu. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor.

(13) Miller, J-A. El lugar y el lazo. Buenos Aires: Paidós, pp. 67-71.

(14) Idem, p. 69.

(15) Idem, p. 69-70.

(16) Lacan, J. Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, pp.198-205.

(17) Lacan, J. (1973-1974/ 1985) O seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor.

 

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