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CORPOS DE MULHERES VIOLENTADAS

Entrevista concedida por Heloísa Buarque de Almeida*

Eduardo Benedicto**

Eduardo Benedicto - Gostaria de começar esta entrevista, a partir do que compartilhamos recentemente, quando debatemos um filme no Cinecult na USP-Ribeirão: como você analisa a transformação da cultura brasileira, se é que houve, e se aconteceu de maneira significativa, considerando a visão da "provocação" por parte da mulher, num caso de abuso sexual e estupro, versus a responsabilidade social e criminal do homem nos dias de hoje?

Heloísa Buarque de Almeida

Eu não vou falar da “cultura brasileira” pois isso seria algo muito amplo, estamos num país muito heterogêneo, há muitas diferenças em termos de regiões, cidades, grupos sociais distintos. Acho que vivemos uma situação em que esta diferença de visões é muito

evidente. O país está vendo um congresso extremamente conservador querer voltar atrás em leis e regras de direitos importantes, como o tal Estatuto da família, ou uma proposta de lei que impede o atendimento pós-estupro que temos hoje no país, e que ainda precisava ser expandido.

No caso da violência sexual que tem aparecido de maneira escandalosa nas universidades, o que vemos é exatamente um conflito evidente de posturas em termos dos direitos das mulheres e do que significa a ideia de consentimento na prática sexual. As denúncias que tivemos revelam que, em situações de sociabilidade, algumas meninas estão sendo abusadas quando estão bêbadas, ou inconscientes de alguma forma. O que sabemos de pesquisas com mulheres é que muitas vezes, em tempos passados e gerações anteriores – e que ainda acontece muito – se fossem numa festa e bebessem demais e acontecesse algo assim, as moças se sentiam culpadas, responsáveis, ficavam com vergonha, perguntavam “onde eu errei”, ou seja, a vítima se sentia culpada pelo ocorrido. E também ela era culpabilizada pelos outros, que poderiam inclusive fazer uma avaliação da moralidade sexual desta garota, dizendo que ela arriscou, que ela queria, “não se deu ao respeito”, algo assim. Opiniões que mostram um julgamento moral e uma separação entre moças mais comportadas, para casar, e moças “sem moral”. Esse julgamento não é feito para os homens, ou seja, é um julgamento que expressa uma desigualdade entre homens e mulheres em termos de liberdade – liberdade de ir e vir, de estar no espaço público, inclusive.

Se uma jovem vai hoje numa delegacia denunciar esse tipo de violência, infelizmente, mesmo em Delegacias de Defesa da Mulher (DDMs), ela pode ver a queixa ser desvalorizada. Numa delegacia, se a pessoa foi estuprada mediante muita violência física, essa queixa é vista como um crime chocante, mas se houve sexo sem consentimento num contexto de sociabilidade, festa, bebidas, numa república, etc., mesmo as DDMs não têm tratado essa vítima como deveria. E é esse o erro grave das universidades.

Eduardo Benedicto - Por falar em universidade, considerando o debate iniciado na USP/Ribeirão, que também foi um evento preparatório para as próximas jornadas da Escola Brasileira de Psicanálise – Seção São Paulo: “Corpo de Mulher”, o que você destacaria em relação ao campo social, jurídico e mesmo universitário, em relação à questão da violência sobre os “corpos de mulheres”? E quais aspectos lhe parecem mais sensíveis no campo das políticas públicas no Brasil, em São Paulo e dentro da USP?

Heloísa Buarque de Almeida

Quando eu coordenei o programa USP Diversidade (2014), algumas alunas, de várias unidades da USP, me procuravam e me contaram que inclusive diretores de unidades souberam de casos de violência sexual, muitas vezes em festas ou repúblicas e particularmente também nas moradias, como o CRUSP, e não deram o devido acolhimento e nem pensaram em nenhum tipo de punição para o agressor. Temos assim agressores conhecidos dos alunos e alunas morando no CRUSP e assistindo às aulas em diversas unidades, ganhando bolsas de estudos, inclusive. E algumas vítimas tiveram um papel muito importante ao denunciar isso publicamente.

O que as jovens de agora, mas não exclusivamente do movimento feminista, estão percebendo, é que elas não são culpadas, e que qualquer tipo de sexo sem consentimento, mesmo sem espancamento, por exemplo, é um estupro. De fato, a definição legal de estupro também mudou recentemente – qualquer ato sexual sem consentimento (nem precisa ter penetração vaginal) pode configurar legalmente um estupro, embora seja difícil provar que ele ocorreu ainda no sistema de polícia e no judiciário. Há por vezes descompassos entre a lei e se ela é efetivamente aplicada.

No caso da universidade, o grande problema não é apenas que tais casos tenham aparecido, mas é como eles (não) foram atendidos – ou seja, a universidade foi omissa e muitas vezes conivente com a violência. Nesse sentido, a universidade pode ser acusada de violência institucional. Como vamos dar um diploma para um rapaz que dopou e estuprou várias colegas, quando sabemos e temos provas de que isso aconteceu, e depois de uma sindicância mostrar que havia mesmo o problema? E quem acha que isso é um problema só da USP está enganadíssimo. Tenho falado em outros estados e com professores de outras universidades, o problema é mais geral. E tem aparecido também nas universidades estadunidenses e inglesas.

No caso da USP, o problema nos levou a formar a “Rede de Professoras e Pesquisadoras pelo fim da violência sexual e de gênero na USP”, desde abril de 2015. Fomos motivadas a demonstrar os problemas de violência de gênero que temos na universidade, dos quais o estupro é o mais assustador, mas não é o único. Temos problemas de assédio sexual, de formas de discriminação contra mulheres, LGBTs e negros. O que a universidade está vendo é algo mais geral, da sociedade brasileira, mas se somos uma universidade que se quer respeitável, temos que tratar o tema de novos modos, e modos que sejam mais próximos dos direitos humanos, dos direitos das mulheres, com respeito à diversidade sexual e de gênero.

 

Eduardo Benedicto - O tema da responsabilidade, para nós psicanalistas, é bem caro, pois envolve uma responsabilização subjetiva que, por vezes, pode ser confundida com a culpa e é justamente o oposto desta, pois permite que o sujeito localize algo de seu e tenha maior clareza para colocar um limite em relação à invasão dos outros. Neste sentido, gostaria de saber o que pensa sobre a experiência de escuta e atendimento oferecido as vítimas de estupro e práticas de violência.

 

Heloísa Buarque de Almeida

Eu não posso falar de psicanálise, mas um risco que sinto é a falta de preparo para questões de gênero, a falta de entendimento da temática. O primeiro atendimento pós-estupro tem que ser o atendimento médico – até 72 horas depois da violência, a vítima tem direito ao protocolo de atendimento médico que inclui pílula do dia seguinte, antirretroviral, exames para DSTs, etc. Além disso, ela precisa ser ouvida sem julgamentos morais e sem ser responsabilizada pelo que ocorreu. Quero dizer, primeiro a pessoa precisa de muito apoio, pois se conseguiu falar sobre o que aconteceu ela já pode estar superando muitos entraves e sofrimento. Oficialmente, ainda não temos na USP um local para esse tipo de atendimento e acolhimento, até onde eu sei, não sei se em Ribeirão Preto há algo estruturado, mas no campus do Butantã em São Paulo, não há. Nada. Para o atendimento pós-estupro indicamos hospitais como o Pérola Byington, que tem um programa importante, e não temos nenhum atendimento institucional razoável por enquanto, nem em Hospital Universitário, nem, infelizmente, na assistência social. Temos feito um pouco informalmente isso na Rede das Professoras quando somos procuradas por algumas alunas, mas normalmente semanas ou meses depois do estupro, e nosso apoio tem sido indicar caminhos de atendimento médico e jurídico, inclusive os mecanismos para denúncias formais na universidade. (por exemplo, no site: http://prceu.usp.br/pt/como-denunciar-casos-de-discriminacao-violencia-e-assedio-na-usp/ ). Não temos estatística sobre os casos. Mas quem tem acolhido mesmo têm sido os coletivos feministas, porém de modo não institucional.

 

Eduardo Benedicto - Para fechar essa nossa conversa, me conte um pouco sobre sua posição de profissional-cuidador do sofrimento alheio, que você acaba experimentando em alguns momentos. O que você costuma dizer ou diria a uma mulher violentada sexualmente e, por outro lado, o que diria ao homem/homens que a violentaram? Agradeço por sua disponibilidade para essa conversa.

 

Heloísa Buarque de Almeida

O que eu diria, bem... ou o que eu tenho dito! Olha, eu não sou especialista no tema, tenho tratado diante das emergências e sugiro que vocês conversem com gente mais especialista na área de violência de gênero e sexual. O que aprendi com professoras colegas da USP que trabalharam nesse tipo de atendimento, como Ana Flavia d’Oliveira e Rosana Machin do Departamento de Medicina Preventiva na FMUSP, é que temos que saber ouvir as demandas da pessoa, ver o que ela quer fazer, não responsabilizá-la pelo fato ocorrido – não dizer que foi culpa dela (e acho que nem a palavra “responsabilidade” ajuda aqui), ou ficar perguntando porque ela bebeu, porque foi à festa, por exemplo, ou porque confiou em alguém, pois isso parece mais uma atitude de culpá-la e não de ajudá-la a superar o sofrimento.

Quanto aos agressores, é bem complicado também. Primeiro, eles precisam entender sua responsabilidade, e a maior parte deles insiste que foi sexo consensual, mesmo quando a menina estava completamente desacordada. Eles não acham que erraram, porque normalmente não percebem a menina como uma pessoa que tem os mesmos direitos que ele. Temos que incentivar um debate sobre consentimento – sim ela foi à festa, estava bêbada, de minissaia, mas nem sempre gostaria de fazer sexo com aquele que a atacou. Talvez ela quisesse com outra pessoa, mas ela tem o direito de escolher – como dizia Leila Diniz nos anos 1970 a um militar que insistia em assediá-la e afirmava que ela “dava para todo mundo”, ao que ela respondeu: “eu dou para todo mundo, mas não dou para qualquer um”. Pois é, a menina também pode escolher, e alguns rapazes não entendem isso, pois não vêm as moças como “pessoas completas”.

Por outro lado, o agressor deve ser responsabilizado, o que inclui uma punição. Estupro é crime, merece cadeia. A universidade tem tido mais pena do agressor do que das meninas – e se ele for preso? Coitadinho... (estou sendo irônica). Acho que eles deveriam ser expulsos. Não acho certo premiar com um diploma da USP um aluno que é agressor – e os agressores são normalmente recorrentes, não têm apenas um caso pesando contra eles, mas a maior parte dos casos não foi denunciada formalmente, inclusive porque as alunas não sentem e não têm apoio para isso.

Não sou psicóloga, nem psicanalista. Como professora, acho que temos o grande desafio de ensinar. Precisamos falar sobre gênero na escola, desde a educação infantil sim! Que história é essa de tirar a discussão de gênero dos Planos de Educação? Falar de gênero é também discutir como ensinamos os meninos a não chorar, mas a bater – assim, eles aprendem a reagir violentamente diante de frustração ou sofrimento. Depois, nossa sociedade ensina os meninos a serem “machos pegadores”, deu mole, “pegue”. Deu tesão, não controle! Imaginam-se os homens como aqueles animais com desejos sexuais incontroláveis. E se promove isso socialmente, em muitas esferas, família, escola, entre amigos, a mídia.

Temos que falar de sexo na escola, ter educação sexual para uma vida sexual mais feliz, responsável (em termos de cuidado de si e cuidado do outro). Por isso, acho que temos que enfrentar o conservadorismo, ou isso vai continuar acontecendo.

O que vemos na universidade é reflexo de um sexismo e uma desigualdade maior que está na nossa sociedade. As mulheres não têm efetivamente ainda os mesmos direitos que os homens, embora a lei seja razoável em muitos aspectos. Precisamos muito do feminismo. Sabe-se que a violência sexual é muito comum no país, e calcula-se que apenas 10% dos casos sejam efetivamente denunciados. Também sabemos que a maior parte dos casos se dá entre pessoas que se conhecem, e não numa rua escura – são amigos, namorados, colegas de trabalho, parentes aqueles que mais estupram no Brasil (e provavelmente no mundo todo). Por isso, é muito difícil denunciar. Por isso, essas meninas que denunciaram aqui na USP são, do meu ponto de vista, muito corajosas, pois enfrentam um sistema que não as apoia em quase nada.

 

*Prof. Dra. do Departamento de Antropologia - FFLCH - USP - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

 

**EBP/AMP

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