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CORPO DE MULHER, UMA INTERPRETAÇÃO DA HISTERIA

 

Carmen Silvia Cervelatti*

Em seus Estudos sobre a Histeria, Freud demonstra, em todo frescor de suas primeiras descobertas, o poder da incidência da palavra na sexualidade, nos corpos que falam. As histéricas falam, falam... Também as mulheres: elas não sabem o que dizem!, disse Lacan. Freud descobriu o inconsciente colocando-se como parceiro da histérica, ao interpretar a sua fala. Lacan deu estatuto de discurso a este quadro clínico: um sintoma que se articula e se endereça a um significante que interpreta os vários sentidos deste sintoma ($ --> S1), produzindo o saber inconsciente, tendo o objeto no lugar da verdade. Sabemos que Lacan introduziu o dispositivo analítico enquanto histerização; a histeria, neste contexto, revela o inconsciente.

Em 1977, Lacan se diz embaraçado com a seguinte afirmação: “coloquei um pavimento no campo de Freud” (1), um andar a mais que as representações. Ao inconsciente deu corpo, mediante a topologia do nó borromeano. Com isso, o falasser substitui o inconsciente freudiano. Nem por isso a histeria deixou de servir à psicanálise. Neste mesmo texto, Lacan confessou que não deixou de ser guiado pelas histéricas “naquilo que ainda temos ao alcance como histérica”. A cadeia significante a ser decifrada está ligada ao corpo, graças à substância gozante, o significante é causa material do gozo. Levando-se em conta estas últimas considerações de Lacan sobre a histeria, em que medida podemos aproximá-la do falasser?

“O inconsciente se origina no fato de que a histérica não sabe o que diz, quando de qualquer maneira ela diz alguma coisa com as palavras que lhe faltam. O inconsciente é um sedimento de linguagem.” (2). Essas “palavras que faltam” às histéricas, podemos

situá-las no mais além do sentido, tecido a partir das representações inconscientes, isso que se conserva fora de qualquer simbolização, isso que é corpo, que se toca com o gozo da fala.

O que a histeria continua, então, a ensinar aos psicanalistas? Lacan, neste mesmo texto, propôs que as palavras fazem corpo e com o uso de certas palavras da histérica, quando ela passa a falar a “coisa com a qual ela se assustou”, o psicanalista pode chegar a dissolver o sintoma porque “o afeto se evaporou” pela operação com as palavras, graças àquelas que lhe faltam.

O significante “brancura”, do corpo da Sra. K, a Outra mulher para Dora, contribuiu para a formação de seus sintomas, manifestações da erotização de partes do corpo que deixaram de se ditar pelo saber biológico, por exemplo, a afonia – satisfação substitutiva pela via do objeto voz, um acontecimento de corpo. Ao pontuar esse significante, Lacan apontou o erro de Freud ao interpretar os sintomas edipicamente. “Brancura” denota o real em jogo na sexualidade de Dora, isso que fala não pelas palavras articuladas e sim pelo corpo das palavras que lhe faltam.

O falasser é tributário do significante, desde que ele afeta um corpo que se goza, produzindo uma marca de gozo. Há dois registros do gozo para o corpo falante, que o divide: gozo da fala (fálico) e gozo do corpo. Divisão  semelhante  encontra-se  no corpo de mulher, advinda 

 

da posição de não-toda referida ao gozo fálico; ela tem acesso também ao gozo suplementar. Parte do feminino não pode ser cifrado, permanece fora das representações do inconsciente, razão da impossibilidade ser inerente à posição d´Ⱥ mulher. É impossível se dizer algo dela, impossível localizar seu gozo; assim é incapaz de identificação, exceto como histérica ou mãe, ambas pela via fálica. E o objeto? Haveria alguma relação com as “palavras que faltam”? O objeto, simplesmente causa do desejo, Lacan o localiza no lado mulher nas fórmulas da sexuação (3), desde onde o homem pode abordar a mulher. Como histérica ($), a mulher se faz de homem tendo no objeto sua possibilidade de dirigir-se ao lado mulher $ --> a, já que se embaraça tanto em sustentar este semblante para um homem. O objeto é uma questão de corpo, destacado pela operação da metáfora paterna e da significação fálica.

Em seus textos sobre o feminino, Freud demonstrou que a devastação está em íntima conexão com o pré-edípico, ou seja, com o desejo da mãe não-todo metaforizado pelo Nome-do-Pai. Freud dizia que não é possível “compreender a mulher enquanto não considerarmos essa fase pré-edípica de fixação na mãe” (4). A mulher está bastante impregnada pela mãe, porque a relação mãe-filha é baseada na reivindicação fálica de querer ser o objeto exclusivo do desejo da mãe e de culpá-la por tê-la feito desprovida do falo. Mantém-se assim na posição de filha, o que não a impede de atuar a devastação em outros laços sociais. Ao esperar mais da mãe que do pai, ela fica sem palavras e sem recursos.  E  o  sintoma  histérico? Ele

dá notícias deste aquém do Nome-do-Pai? Sim, mas enquanto sintoma do sintoma de um outro, muito provavelmente a partir dos restos do feminino que subsistem na mãe, aquilo que não foi suficientemente metaforizado pelo Nome-do-Pai. O falo é sempre um recurso frente ao furo do real do sexo.

Quais consequências podemos extrair da aproximação necessária entre mulher e histeria, já que sempre esta é uma questão de fêmea, mesmo se tratando de um histérico macho (5)?

Sabemos que a histérica sofre por não conseguir se situar, ficando à mercê do desejo do Outro. Isso dá sinais do feminino “sem lugar” e “sem palavras” dados pelo furo, pelo vazio, pois como mulher é marcada pela impossibilidade de um referente localizador de

seu gozo; o gozo suplementar a diferencia do Homem. Um corpo de mulher, dividido pelo gozo, não é sem esta marca do sem nome, do sem lugar, do risco do desaparecimento, do real, mesmo que tenha operado a função paterna. Pelo dispositivo analítico, a histeria demonstra que algo se faz com o que lhe falta, com as palavras que lhe faltam. Corpo de mulher interpreta a histeria a partir do corpo falante, do parlêtre.

* EBP/AMP

 

NOTAS

 

(1) LACAN, J. Considerações sobre a histeria, in Opção Lacaniana Edição especial 50, dezembro 2007, p.18.

 

(2) Idem, p.17.

 

(3)LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1982, p.105.

 

(4) FREUD, S. Novas Conferências introdutórias sobre Psicanálise, Conferência 33: A feminilidade, ESBOCSF, vol. XII. Rio de Janeiro: Imago.

 

(5) LACAN, J. Considerações sobre a histeria, in Opção Lacaniana Edição especial 50, dezembro 2007, p.17.

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