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SOM NO CORPO: RESSONÂNCIAS NO REAL?

 

Eduardo Benedicto* 

Com esta questão inicialmente esboçada, pergunto-me acerca do efeito do som no corpo, do gozo, da satisfação que o som provoca, que faz ressoar o corpo do ser falante e produz efeitos de sentido, de metáfora, de nomeação e de sinthoma.

 

Acompanhamos a mudança no estatuto do inconsciente para Lacan: do estádio do espelho, da imagem do outro constituindo o eu - moi, para o inconsciente metáfora, que induz um efeito de sentido pela substituição significante, tendo o eu - Je como efeito, até chegarmos a formulação do inconsciente real: “Quando o esp de um laps – ou seja, visto que só escrevo em francês, o espaço de um lapso já não tem nenhum impacto de sentido (ou interpretação), só então temos certeza de estar no inconsciente” (1).

Neste espaço de um lapso, vazio que se chega ao depurarmos os efeitos de sentido da articulação significante, poderíamos articulá-lo ao som e seus efeitos no corpo falante? 

 

Lacan parte de Saussure para construir a noção do inconsciente estruturado como uma linguagem, servindo-se da noção de significante como imagem acústica. Miller em seu texto “Biologia Lacaniana e Acontecimentos de Corpo”(2) estabelece a relação entre o corpo e o significante em diferentes momentos do ensino de Lacan, e coloca o acento, à partir de sua última formulação, sobre o significante enquanto materialidade, e diz que esta materialidade é tomada do som e do corpo.

 

Jean Charmoille (3) propõe que há uma musicalidade que a voz materna repercute, equivalendo-a a uma transmissão de uma radicalidade do simbólico, que escapa propriamente à simbolização. A despeito desta não simbolização, esta “música” é o que vai tornar possível o acesso à significação das palavras pelo ser falante: um suporte real, tomado do corpo da mãe, para o estabelecimento da significação fálica. 

Para além do simbólico, da perspectiva da harmonização, verificamos a satisfação, ou a reverberação, muitas vezes indescritíveis da presença do som, do encontro do som com o corpo (rave, funk, olodum, sons tribais, etc). Exibimos no Cinecult em 2015, três filmes que tratam do som em diferentes perspectivas. 

 

No documentário “As canções”, Eduardo Coutinho entrevista pessoas que narram e “cantam” suas histórias a partir de músicas que marcaram suas vidas. Exprimem uma metaforização de suas histórias de vida pela canção (encontros, desencontros, traumas, perdas) que trazem também, no entanto, um mais de satisfação “a flor da pele”, não contido pela "palavra cantada". 

No “Cinema Falado” de Caetano Veloso, a satisfação se dá mais pela exploração das falas e das referências filosóficas e poéticas que ressoam sem interligação, sem aparente articulação simbólica. Este filme parece remeter o espectador a um encontro com um gozo opaco ininteligível, afastando alguns que vêm em busca de um sentido mais imediato e aproximando outros que se deixam tocar por um mais-além do sentido. A operação de costura metafórica, e de algum sentido, fica por conta do debatedor que oferece alguns elementos que nos ajudam a tecer, a formar o corpo de uma transmissão permeada de sentidos e também "nonsense". Já no documentário “É o Fluxo”, os diretores mostram como jovens, tomados pelos efeitos do som no corpo, se servem da música como uma base material para construção (ou reconstrução) de suas histórias, permitindo-se um outro lugar no social: “O funk me deu um lugar!”

Miller no texto de apresentação do próximo Congresso da AMP no Brasil em 2016, fala sobre o alcance da interpretação na prática analítica hoje, sendo que nos resta saber formalizar, demonstrar: “A interpretação é um dizer que visa ao corpo falante para produzir nele um acontecimento, para passar para as tripas, dizia Lacan. Isso não se antecipa, mas se verifica a posteriori, pois o efeito de gozo é incalculável. Tudo o que a análise pode fazer é afinar-se com a pulsação do corpo falante para se insinuar no sintoma. Quando se analisa o inconsciente, o sentido da interpretação é a verdade. Quando se analisa o falasser, o corpo falante, o sentido da interpretação é o gozo. Esse deslocamento da verdade ao gozo dá a medida do que se torna a prática analítica na era do falasser”(4). 

 

Para terminar este primeiro esboço de minha questão, relato dois fragmentos de passe que me pareceram ser índices desta nova interpretação, com os efeitos do som no corpo.

 

Na primeira passagem, a de Marcus André, ele relata o quanto os sons do analista, a partir de suas intervenções, ocuparam o espaço das últimas sessões, oferecendo suporte material, através do som, com base em minha leitura de seu relato, ao que se configuraria como o sonho de final de análise e a nomeação/interpretação: "mordidavida".

 

“(...) Sons e intervenções do analista faziam o coração bater rápido. (...) Nesta época, em uma sessão, no momento em que falava da violência desse pulsar e associava com cenas de guerra, a interpretação veio precisa: “seu coração é um tambor.” (...) Eram ali que ecoavam as intervenções sonoras do analista e que sentia sua presença, reagindo à sua voz de outra forma, bem distinta do tambor soando um “vamos à luta”. Era o tanto de gozo fora do corpo, de vida que não cabe na vida e se manifestava como vontade de me lançar para dentro e não para fora, para o encontro com desejo a descobrir, e não a antecipar. (...) Nesse tempo, entre outras coisas, fui vivendo outra relação com a música, tão presente na minha história. Mais importante: descobri uma proximidade nova com as mulheres, por poder amá-las menos por sua loucura, como se ama o trovão, e mais pelo modo como se viravam com um real que as ultrapassava”(5).

 

O segundo passe que tomo como base material desta minha articulação, se apoia no depoimento de Ram Mandil. A partir da interpretação do analista: “há um vazio em seu corpo”, ele nos relata: "(...) Seguindo as indicações de Jacques-Alain Miller sobre o trauma, arrisco-me a dizer que essa frase capta o efeito do encontro da língua sobre meu corpo, e marca a minha condição de falasser. (...) Minha hipótese é que esse “há um vazio no seu corpo” é a maneira como pude apreender o “Há Um”, como efeito da percussão do trauma, como a repetição de uma mesma nota e que uma análise é capaz de discernir em meio à polifonia das fantasias. Em certo sentido, podemos dizer que o sinthoma, ao final, é a possibilidade de fazer percussão dessa única nota, um pouco à la Tom Jobim, um “samba de uma nota só”, lá onde o batimento do trauma, que ressoa ao longo de uma vida, só parecia dar lugar ao enredo trágico.” (...) “Em minha experiência, esse aspecto da resposta fantasmática ao trauma pode ser resumido na resposta dada à frase “há um vazio em seu corpo” (S1). Uma vez que há um vazio, “ele deve ser preenchido” (S2). Esta foi a senha para a fabricação de um Outro perante o qual devo me apresentar, a partir da suposição de que esse Outro demanda o preenchimento desse vazio.(...) Podemos dizer que a fantasia é uma forma de articular a percussão do gozo traumático - por si auto-referido - ao campo do Outro. Isto só é possível através da mediação de um objeto que encarna a perda de gozo decorrente do encontro língua-corpo. (...) Nesse sentido, o que chamamos de travessia da fantasia pode ser interpretado como a perspectiva que se abre, numa análise, ao se abordar o trauma por outra via que não a fantasmática, e de poder destacar aí a função do sinthoma”(6).

 

 A interpretação analítica veiculada em uma frase que capta o efeito do encontro da língua no corpo e sua condição de falasser “Há um vazio no seu corpo” foi a base material que permitiu ao falasser ir até as últimas consequências e incluir um vazio na nomeação que decorreu do sonho que está relacionado ao final de sua análise: de três letras A,V,D, ao hebraico “avdalah” e à nomeação, que inclui um vazio, e um basta: “há vida lá”! “ Estou diante de uma escolha: buscar o sentido da palavra e reativar um novo circuito imaginário, ou acionar outro modo de leitura, ou seja, aquele que, por um lado, permite conferir a essa palavra o estatuto de um nome, como um modo de nomeação do real do sonho, e por outro a leitura sonora desta palavra, um “há vida lá”, onde antes só parecia haver mortificação de um vazio.” 

 

*EBP/AMP

 

NOTAS

(1) Lacan, J “Prefacio a Edição Inglesa dos Escritos”, Outros escritos, Rio de Janeiro, JZE, 2003, p. 567.

(2) Miller, J-A: "Biologia Lacaniana e Acontecimentos de Corpo” in Opção Lacaniana nº 41, 2004.

(3) Charmoille, Jean: “Abordagem da questão do feminino diante do ensino de Freud e de Lacan”, texto apresentado na Jornada de estudo da S.P.F., Nice, Janeiro de 1999. http://www.sonecrit.com/texte/PDF/portugais/Abordagem-questao-feminino.pdf.

(4) Miller, J-A “O Inconsciente e o Corpo Falante” Apresentação do X Congresso da AMP no RJ em 2016, p 7/8.

(5) Vieira, M.A. “Mordidavida” in Opção Lacaniana nº 65, 2013, p. 31 e 32.

(6) Mandil, R. “Psicanálise de ‘uma nota só’” in Opção Lacaniana nº 68-69, 2014, p. 48 a 50.

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