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Atividade preparatória para as Jornadas da EBP-SP 2015 Corpo de Mulher

Construir um Corpo com Paola Salinas

 

AUTO IMAGEM E UM RETORNO ÀS FIGURAS DO SI MESMO

 

Josiane Bocchi*

Na quarta-feira, 21 de outubro, o público unespiano de Bauru, afeito às discussões psicanalíticas, assistiu à bela conferência da psicanalista Paola Salinas, “Construir um Corpo”, título emblemático, em plena continuidade com as discussões preparatórias para as Jornadas da EBP-SP, Corpo de Mulher. Porém, intrigante, conciso demais, impreciso. Dias antes me vi tentada a indagar sua autora, do que abordaria tal conferência, afinal.

De que corpo se trata, um corpo teórico (arcabouço de conceitos lacanianos, freudianos?), um corpo aparato material? Ou de uma espécie de anatomia às avessas, da história de um psiquismo que emerge também - e essencialmente - via corpo. Tal trajeto

iria em direção ao que tenho estudado há alguns anos: o conceito de eu corporal e o papel das identificações corporais (e narcísicas) para a constituição da autoimagem (sensorialidades, traços visuais, auditivos e sinestésicos que estão na base das primeiras representações de objeto, de si, do outro e do corpo ele mesmo).

A estas primeiras representações de objeto a partir de Freud, também objetos parciais da pulsão, chamo aqui de figuras do si mesmo. Também trabalho com a noção de “corpo ele mesmo”, como um objeto privilegiado do sujeito, como indicado no conceito de narcisismo desde 1914.

Por identificações corporais, me refiro às “identificações primárias”, rápida passagem de Freud em O ego e o id (1923, p.33), para se referir a um tipo de identificação que antecede qualquer escolha objetal, bem como às identificações edípicas, estas sim correlatas à introjeção de objetos no psiquismo, como na gênese dos traços de caráter e do superego, por isso mesmo um herdeiro do Édipo, bem como no modelo de contração da melancolia.

Para Freud, no entanto, chamo a atenção, também existe uma identificação que “à primeira vista, não parece o resultado nem o desenlace de um investimento de objeto: é uma identificação direta e imediata (não mediada), e mais precoce que qualquer investimento de objeto” (FREUD, 1923, p. 33). Enfim, uma identificação não propriamente intersubjetiva, e sim diretamente ligada às experiências corporais, imagens-movimento, feições do outro, sua voz, que são “rastreadas” (termo freudiano, de fato) até as sensações experimentadas pelo próprio corpo. 

“No fim de oito dias, deu-me na veneta olhar para o espelho com o fim justamente de achar-me dois. Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra. A realidade das leis físicas não permite negar que o espelho reproduziu-me textualmente, com os mesmos contornos e feições; assim devia ter sido. Mas tal não foi a minha sensação” (Machado de Assis, 1882/1993, p. 123).

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Mas, retornando ao Construir um corpo, como aquilo que se constrói, também se descontrói, ocorreu-me também a idéia de maquinaria, montagem, desmontagem, soldagem e dissolução. Pois bem, partindo da noção lacaniana do estágio do espelho e seu papel estrutural para o sujeito, a partir dessa captação totalizadora (e ficcional), a conferência abordou a relação intrínseca e paradoxal, entre imagem do corpo e corpo da imagem, num sentido de duplicidade constitutiva que, se bem compreendida, vai para além da dimensão especular e inclui o registro do real, articulando, assim, o imaginário e o real na incorporação de uma imagem, seja do corpo próprio (outra noção abordada em sua fala), seja no preenchimento ou acontecimento da imagem ela mesma. Por fim, um eixo condutor da sua fala teria sido o papel fundamental da imagem: “não existe sujeito antes da imagem” e, ainda, “não há um corpo que se satisfaça separado da imagem", a partir das indicações de Miquel Bassols. 

Eis então porque recorro ao conto de Machado de Assis (“O espelho”), ao descompasso narrado pelo jovem Jacobina, onde a imagem corporal não coincide com a moldura objetiva ou contornos anatômicos do corpo. É antes de tudo o modo como o sujeito se percebe e também acredita ser percebido, pelo lado de fora (pelo outro).

Vale também lembrar que a patologia é uma ocasião na qual as distorções do esquema corporal revelam as rupturas e desenlaces entre a imagem objetiva do corpo e a imagem subjetiva.

A representação de um corpo, como no artefato do caleidoscópio, diz respeito a um corpo vivo, carne e imagem, cujas representações, sob certas circunstâncias, também se descontroem. Assim, quais figuras do si mesmo se destacam do vidro diante do personagem? 

No entanto, um dos aspectos centrais levantados na conferência diz respeito a uma dimensão corpórea que se articula para além ou aquém do campo representacional, uma dimensão que está fora da ordem do sentido, da linguagem e de toda interpretação.

Assim, o título da conferência fez jus à natureza complexa e fugidia do tema corpo e imagem. Os conceitos discutidos pela psicanalista puderam iluminar alguns dos problemas com os quais nos deparamos diariamente no Projeto de Extensão: Clínica Psicanalítica e Práticas Interventivas em Psicossomática, mesmo em um dia em que o campus da Unesp de Bauru estava sem luz.  

 

*Professora Assistente Doutora do Departamento de Psicologia da Universidade Julio de Mesquita Filho, Unesp-Bauru

 

Referências:

 

Machado de Assis. O Espelho. In Contos. Seleção, Introdução, Notas e Questionários de Francisco Achar. CERED: Objetivo, 1993. (Originalmente publicado em 1882)

Freud, S. El yo y el ello (1923). In: Obras completas de Sigmund Freud. Buenos Aires: Amorrortu, 1989, vol.19, p. 1-66.

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