A MULHER FACE AO ESPELHO: NOVAS VIRILIDADES
Maria Josefina Fuentes*
A virilidade norme-mâle na mulher
Na década de 30, o tema da sexualidade feminina girou em torno da questão se a identificação masculina da menina ao pai seria um obstáculo ou daria acesso à feminilidade. Enquanto Karen Horney e Ernest Jones defendiam uma identificação feminina que repousaria na vinculação inata e direta à mãe, em relação à qual a masculinidade seria uma defesa, Freud e algumas analistas como Hélène Deutsch, insistiam na primazia fálica como a normalidade para ambos os sexos – a norme-mâle, segundo o Witz de Lacan (Lacan, J. “O aturdito”. In Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 480.) que evoca o normal (normal) e a norme mâle (norma masculina). Apesar das críticas feministas, Freud foi irredutível em relação à tese do falocentrismo no inconsciente que reconhece apenas um significante, o falo, para designar a dissimetria dos sexos, sendo que uma identificação própria à mulher é o que permanece ausente.
Na mesma direção, Lacan, em 1958, longe de resumir a “assunção do sexo em termos de papel” (Lacan, J. “Observação sobre o relatório de Daniel Lagache”. In Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998,op. cit., p. 689.), quando então criticava a nascente clínica do gênero, situa a dissimetria em termos de ser ou ter o falo, destacando o caráter viril intrínseco à estratégia feminina da mascarada: “para ser o falo, isto é, o significante do desejo do Outro, a mulher vai rejeitar uma parcela essencial da feminilidade” (Lacan, J. “A significação do falo”. In Escritos, op. cit. p. 701.).
Daí, inclusive, o efeito curioso de que “a própria ostentação viril pareça feminina” (Ibid. p. 702.). Contudo, afirma em seguida que “convém indagar se a mediação fálica drena tudo o que pode se manifestar de pulsional na mulher” (Lacan, J. “Diretrizes para um Congresso sobre a sexualidade feminina”. In Escritos, op. cit., p.739.).
Foi somente nos anos 70 que Lacan adentrou o dark continent freudiano para abrir a Caixa de Pandora com o recurso da lógica, esclarecendo que a mulher é não-toda assujeitada à lógica masculina. O falocentrismo, como função de gozo, impõe-se para todos no lado masculino da sexuação – conjunto definido a partir da exceção de Um, que escapa à castração. “A castração de fato dá prosseguimento, como vínculo com o pai, ao que é conotado em todo discurso como virilidade”, esclarece Lacan (Lacan, J. “O aturdito”. In Outros escritos, op. cit., p. 460.). Ao passo que, sem essência nem existência, A mulher, definida em termos universais, não existe no inconsciente. Foracluída do simbólico e do imaginário (Cf. Brousse, M. H. “Las feminidades: el Otro sexo entre metáfora y suplencia”. In Del Édipo a la sexuación. Buenos Aires: Paidós, 2001, p. 60.), permanece Outra, ausente de si mesma, ao experimentar um gozo não-todo indizível, encarnando, assim, na dialética falocêntrica, a alteridade do Outro absoluto.
Quando Lacan reafirma que, “contrariamente àquilo em que se acredita,
o falocentrismo é a melhor garantia da mulher” (Lacan, J. “Conferência em Genebra sobre o sintoma”. In Opção lacaniana, São Paulo, Edições Eólia, n. 23, dez.1998, p. 16.), indica que a virilidade como norme-mâle, que implica a castração como perda de gozo para ambos os sexos, protege o sujeito do enlouquecimento de um gozo feminino que pode arrastá-lo, lá onde ele não se encontra, tanto mais quanto se desgarra dos limites da castração, apresentando-se de modo mortífero. Por outro lado, quanto mais a mulher se agarra ao Um do gozo fálico universalizante, ao império das identificações imaginárias, mais segrega o feminino que nela habita, e cujas condições de gozo só podem ser enunciadas no singular, a partir das formas sintomáticas de cada uma.
Assim, ao postular uma virilidade norme-mâle definida em termos lógicos – que não se confunde com os semblantes imaginários masculinos que uma mulher pode assumir –, e que em toda identificação sexuada há um impossível que não recobre o real do sexo para o ser falante, a psicanálise se diferencia de uma prática retrógrada que visaria restabelecer o domínio do binarismo homem/mulher. Pelo contrário, com a conceituação do não-todo, aponta uma saída para os impasses do ser falante quando enclausurado sob o regime do gozo todo fálico, que segrega o feminino, não sem angústia.
Não-toda no espelho e a resposta da histérica freudiana
Não-todo, o corpo sexuado da mulher não encontra representação nem no significante, nem na imagem do espelho, que se constitui “como uma identificação, no sentido pleno que a análise atribui a esse termo, ou seja, a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem” (Lacan, J. “O estádio do espelho como formador da função do eu”. In Escritos, op. cit., p. 97.). Entretanto, quando a função fálica opera e o objeto a é extraído do corpo, ainda que a identificação com a imagem ideal conferida pelo discurso do Outro fracasse em escrever a relação sexual, serve de vestimenta para a pura vacuidade d’A mulher, dando consistência fálica aos semblantes por meio dos quais uma mulher pode identificar-se ao seu corpo.
Essencialmente carente de uma identidade, contrariamente ao que Freud acreditava, a mulher não é narcisista senão secundariamente (Cf. Laurent,E.“Positions féminines de l’être”.In La Cause Freudianne
Paris, Seuil, n.24, 1993, pp.107-113); ou seja, o narcisismo como amor de si, comum aos dois sexos, surge na mulher em resposta ao que Lacan designou como “narcisismo de desejo” (Lacan, J. “Diretrizes para um Congresso sobre a sexualidade feminina”, op. cit., p. 742.). Este é a expressão do amor feminino ao desejo do Outro, do qual uma mulher extrai a consistência corpórea fálica quando responde ao modo fetichista do desejo masculino, desde que consinta em ser tomada como objeto de um desejo singular. “A mulher só pode ocupar seu lugar na relação sexual, só pode sê-lo, na qualidade de uma mulher. Como acentuei vivamente – prossegue Lacan – não existe toda mulher.” (Lacan, J. Seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p. 133.)
Frente à foraclusão do significante d’A mulher no inconsciente, a resposta emblemática da histérica consiste em transformar o furo da estrutura em enigma a ser desvendado por um Outro no lugar de exceção, que lhe entregaria a identidade d’A mulher. Ou seja, mobiliza a significação fálica como suplência à relação sexual que não existe, fazendo do fracasso desta (Lacan em “O aturdito” (op. cit., p. 459) esclarece que o fracasso é de estrutura: “a função fálica […] é apenas um modo de acesso sem esperança à relação sexual”.) seu triunfo para reinar sobre o mestre, classicamente encarnado pelo pai, com o qual se identifica. “O que a histérica articula, certamente, é que, em matéria de bancar o todohomem, ela é tão capaz de fazê-lo quanto o próprio todohomem, ou seja, pela imaginação.” (Lacan, J. Seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante, op. cit, p. 134.)
Ávida por uma identificação que a proteja da inexistência, a histérica convoca um Outro que a alivie de sua própria divisão, refugiando-se na norma fálica do todo viril. Basta um “minha mulher não é nada para mim”, como confessava o Sr. K, para que o mundo de Dora caísse, junto com o ideal da feminilidade encarnado na Sra. K., que passa a ser nada nas redes da significação fálica. Quando, nem tudo nem nada, uma mulher pode ser Outra, inclusive para si mesma (Laurent, E. “Positions féminines de l’être”, op. cit.), desde que consinta com sua divisão de gozo.
O declínio do pai e o apelo a Um-todo
Tal como propõe J.-A. Miller, no processo de feminização na civilização nos tempos em que o Outro como ponto de basta não existe para deter o empuxo-ao-gozo sem limites – queda da função paterna e do regime edipiano fundado na lógica masculina da exceção –, contrariamente ao que se pensa, são as próprias mulheres as defensoras mais ferozes do regime da lógica masculina. “O regime do todos iguais não somente não escapa ao regime edípico, mas, propriamente falando, também o constitui.” (Miller, J.-A. La naturaleza de los semblantes, Buenos Aires; Paidós, 2001, p. 57 - traduzido livremente).
Contrariamente à série infinita na qual cada mulher é excepcional, as novas formas do discurso histérico clamam por um universal feminino – nós, as mulheres, como todo mundo – que corresponderia em espelho à lógica masculina (Cf. Laurent, E. “Semblantes e sinthoma”. In A psicanálise e a escolha das mulheres. Belo Horizonte: Scriptum, 2012, p. 208.).
Interessa-nos aqui, portanto, isolar algumas formas das novas virilidades que se apresentam como uma defesa contra o feminino na contemporaneidade, ou seja, não como uma divisão de gozo na mulher, mas como sintomas que rechaçam o não-todo, quando o amor ao pai em declínio, parceiro clássico da histérica, não se sustenta mais no lugar da exceção, que antes garantia uma armadura para o corpo que a resguardava do feminino pela via da identificação com o seu sintoma.
A mulher como sintoma para elas mesmas
Segundo Brousse (Brousse, M. H. “Feminismo”. In Scilicet dos Nomes do Pai. AMP, 2006, pp. 55-56.), Lacan interpreta o movimento feminista com a pluralização dos nomes-do-pai, esclarecendo que, à série da inibição, sintoma e angústia, A mulher como universal também pode funcionar como um dos nomes-do-pai, um sintoma, quando a função paterna já vacilava na cultura.
Tal interpretação pode ser aplicada tanto ao primeiro movimento feminista, que lutou pela paridade de direitos da mulher em relação ao homem – todos iguais –, quanto ao feminismo francês dos anos 70 que, a partir de uma leitura equivocada das teses de Lacan, buscou no gozo feminino uma essência que qualificasse a mulher, promovendo, paradoxalmente, um “Todo não-todo”. Esta foi a tentação de pensar uma diferença feminina autorreferente, fora do falocentrismo, que poderia ser recuperada através de uma escrita feminina, quando A mulher que não existe não cessa de não se escrever.
Hélène Cixous e suas personagens: O retrato de Dora e Clarice Lispector
A partir da referência de Lacan à histeria rígida (Lacan, J. O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, pp. 101-114.) e do extenso comentário de Eric Laurent (Laurent, E. “Conferencia: El sinthome”. In Consecuencias, Revista digital de psicoanálisis, n.13/14.), bem como das discussões do VI ENAPOL sobre as versões contemporâneas da histeria, analisaremos as personagens da psicanalista, feminista e escritora, mencionada por Lacan na aula 7 do Seminário 23, Hélène Cixous, por aportarem aspectos esclarecedores e atuais relativos ao tema da nossa investigação.
A Dora de Cixous e a homossexualidade na histeria contemporânea
O inusitado no Retrato de Dora que Cixous apresenta em sua peça de teatro, distante da paciente histérica Dora, de Freud, é que ela não se interessa em absoluto por aquilo que o psicanalista, seu antigo mestre, teria a dizer sobre ela. Não somente não se presta à interpretação de Freud – e ele mesmo aparece bastante desorientado e constrangido –, como desdenha do que ele teria a dizer-lhe, tal como, por exemplo, aparece notadamente nos diálogos finais da peça:
“Freud: Eu diria que você não sabia o suficiente.
Dora: Ou talvez você se ame um pouco demais? [...] Você me faz rir. [...]
Freud: Eu teria te ensinado o que eu aprendi com você. Eu teria gostado de fazer algo por você.
Dora: Ninguém pode fazer nada.
Freud: Mantenha-me informado sobre o que eu estou fazendo. Escreva-me.
Dora: Escrever?... não é comigo!” (Cixous, H. Portrait of Dora. London: John Calder/ Dallas: Riverrun, 1979, p. 66 - traduzido livremente)
Se Freud não está na posição de interpretante, da exceção paterna, contudo, é a Sra. K. que encarna a figura do Outro não castrado, depositária do saber sobre o enigma feminino. Com razão, Laurent (Laurent, E. ibid., p. 2.) questiona se esta personagem, a Dora de Cixous, seria um bom exemplo da histeria rígida que Lacan apresenta no Seminário 23 – a histeria que se sustenta sem seu parceiro, prescindindo do quarto aro suplementar do Nome-do-Pai e do sentido fálico com o qual a histérica clássica interpreta seu sintoma. A Dora de Cixous, embora não tome o pai como objeto de amor e despreze Freud, elege outro parceiro como interpretante, a Sra. K., supondo-lhe um saber universal sobre a feminilidade idealizada, que adquire o estatuto de sintoma, a partir da crença nA mulher que não existe. Quanto mais procura na identificação alienante à Outra o suporte para si mesma, tanto mais desconhece a “materialidade” do real do gozo singular que lhe concerne e que insiste fora do sentido, atribuído ao sintoma.
“Dora: Diga-me mais, diga-me tudo, tudo. Tudo que as mulheres sabem:
como fazer geleia, como fazer amor [...]. Você não imagina o quanto eu
te amo. Você é absolutamente tudo. E eu sou nada, nada. Ninguém.
Ouça-me: eu te amo mesmo você sendo Deus, alguém para quem eu
não existo.[...] Tudo o que você sabe. Tudo o que eu não sei. Deixe-me
dar-te este amor... Sra. K: Meu Deus! O que eu vou fazer com você? [...]
Dora: Deixe-me beijar-te. Deixe-me tomar-te nos braços! Somente uma vez.”
(Ibid., pp. 40-41.)
É bastante evidente também que, se a relação homossexual da Dora de Freud com a Sra. K., recalcada, revelava-se como efeito da interpretação analítica, na personagem de Cixous não há essa barreira, de modo que o acesso ao Outro sexo é direto e aparece “a céu aberto”. Desnecessário, ela não precisa mais do amor ao pai nem do homem para sustentar-se através da identificação ao que considera ser seu gozo, como tampouco sustentá-lo.
Bastou um passo a mais – ao ato – para que proliferassem as relações homossexuais na histeria na contemporaneidade que, segundo Brousse (Brousse, M. H. “L’homosexualité au pluriel ou quand les hystériques se passent de leurs hommes de paille”. In: Elles ont choisi: les homosexualités féminines. Paris: Ed. Michèle, 2013, pp. 21-35.), correspondem a um novo sintoma, que consiste em colocar A mulher que não existe como Outra, idealizada, no lugar vazio da exceção deixado pelo pai em declínio. Deste modo, o sujeito permanece na lógica masculina viril, dirigindo-se diretamente à Outra mulher, que revelaria a própria feminilidade da qual o sujeito se furta de experimentar.
Com efeito, a indústria cinematográfica soube captar o enredo que fascinaria as meninas e jovens de hoje, que consideram a figura do príncipe encantado um clichê desinteressante.
Basta citar Malévola ou Frozen que dispensam o amor ao pai ou ao príncipe encantado – ora ausente ou francamente um vilão –, fazendo a apologia do verdadeiro amor, o materno, ainda que seja devastador, ou entre as irmãs apostando na identificação horizontal, restando ainda a parceria com a solidão do Um todo fálico, erguida num castelo de gelo onde uma mulher pode permanecer lindamente inacessível.
Ainda em relação à peça O retrato de Dora, o que chama a atenção de Lacan (Lacan, J. O Seminário, livro 23: o sinthoma, op. cit., p.102.) é o modo como ela foi realizada. A própria realidade dos ensaios domina os atores na peça, a pragmática da pura repetição que se dá quase “fora da cena”, e não a narrativa do texto, ou seja, a determinação do significante. São sessões de psicanálise onde a dificuldade de expressão da protagonista, Dora, é acentuada em cenas paralelas que se justapõem, nas quais o presente se mescla com o passado através de falas superpostas e repetitivas. A linearidade do texto se perde e o sentido, autorreferente, dissolve-se nas divagações e na voz longínqua do inconsciente que ecoa ao longo da apresentação. Estes traços serão ainda mais acentuados nos escritos de Hélène Cixous depois que ela conhece a obra de Clarice Lispector – dois anos após a encenação da peça, ocorrida em 1976.
Hélène Cixous face ao espelho: a identificação com Clarice Lispector
A tradutora e grande difusora da obra de Clarice Lispector na França, fundadora em 1974 do Centro de Estudos Femininos da Paris VIII, encontrou na obra da escritora brasileira a forma de se expressar que por anos procurava, por quem desenvolve um fascínio arrebatador, a ponto de dizer “Eu sou Clarice Lispector”, ou então, “Certeza que Clarice Lispector me dá a minha semelhança oculta” (Cixous, H. Photos de Racines. Paris: Ed. Des femmes, 1994, p.89.) Não muito distante do seu retrato de Dora, declara francamente seu amor a Clarice em seu livro feminista O riso de Medusa:
“No podemos vivir sin que existan mujeres que presten atención a la vida […] Para conservar la vida necesitamos sentir que las mujeres viven muy cerca de nosotros. Clarice es el nombre de una mujer capaz de amar a la vida por todos sus nombres calidos y frescos. Y la vida acude. Dice: soy. Y, al instante, Clarice es. Clarice es toda entera en el instante en que se consagra a ser, viva, infinita, ilimitada en su ser. Cuando digo: Clarice, no es simplemente para hablarde una persona, es para pedir a Clarice una alegría – un miedo –, una alegría espantada.[…] Sin embargo, miedo? Miedo en la adoración? Miedo a adorar?” (Cixous, H. La risa de Medusa: ensayos sobre la escritura. Barcelona: Antropos, 1995, p. 129.)
O estilo que tanto buscava fora da referência falocêntrica para uma “escrita feminina” – termo cunhado por Cixous e que foi adotado pelos estudos de gênero – é baseado em uma narrativa marcada pelo que ela chama de “feminilidade libidinal” (Entrevista a Betty Milan: http://bettymilan.com.br/artigos/publicados/90-63-helene.htm.), cujo maior exemplo encontra no livro de Clarice Lispector, Água viva.
Para Cixous, a escrita de Clarice, diferentemente de Joyce, “não tortura o significante, pelo contrário. [...] Não é no nível da palavra que ela opera”. (Ibid.). Trata-se, para a feminista, de um texto que inscreve a feminilidade no nível formal da escrita, com a abolição do sentido através de falas soltas, desarticuladas, sem começo nem desfecho, sem limite nem moldura, seguindo o ritmo do corpo como numa corrente de água viva na qual é preciso mergulhar.
Na defesa de um feminino supostamente vanguardista, Cixous, também especialista em Joyce, considerava-o um homem “totalmente reacionário” (Ibid.) por ter desqualificado o lugar da mulher em sua obra e permanecido dentro das estruturas familiares clássicas. A crítica ao patriarcalismo conservador recairia também sobre Freud por não ter saído da premissa fálica, advertida de que o falo é uma falácia.
"O falocentrismo é o inimigo. De todos. Os homens também têm a perder, de maneira distinta das mulheres, mas também seriamente. Chegou a hora de mudar, de inventar outra história." (Cixous, H. La risa de Medusa, op. cit, p. 41.)
Ironicamente, quanto mais Cixous busca sustentar-se identificando-se à Outra mulher idealizada, mais se distancia de sua singular feminilidade, protegendo-se do real do feminino que procura na escrita de Clarice. Assim, na apologia de Um-todo feminino autorreferente, a feminista, paradoxalmente, segrega o não-todo e a lógica própria da posição feminina elucidada por Lacan, protegendo-se do que não cessa de não se escrever.
Uma a uma, resta a cada mulher reconhecer os modos de gozo que lhe concernem para identificar-se, nem ao pai, nem ao falo, nem à Outra, senão ao seu sinthoma, inigualável.
Clarice Lispector e o abismo no espelho vazio
Quanto a Clarice Lispector, talvez possamos concluir com as palavras que o poeta Carlos Drummond de Andrade escreveu na ocasião de sua morte: “Clarice veio de um mistério, partiu para outro.” (Moser, B. Clarice, uma biografia. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p. 13.)
Muito distante do lugar ideal em que costuma ser evocada, sobretudo pelas leitoras que tendem a se identificar com o que sua escrita personifica, Clarice, ao contrário, era profundamente “estrangeira na terra” (Ibid.), exilada no mundo, indescritível para si mesma, cuja escrita, repleta de nomes perdidos, roubados, disseminados, dá consistência ao que inexiste, nos confins do mundo humano, e a fragilidade da existência compõe a tônica central em sua obra.
Lançada à desintegração, à ausência de identidade do vazio da imagem, descrente dos artifícios humanos, afunda no sem-sentido, conduzindo o leitor a habitar a precariedade de um mundo sem referentes. Suas personagens se desintegram com uma narrativa que produz uma dissolução extrema: “do narrador, do (a) protagonista, ou do próprio texto e de seu aparente ‘enredo’ inicial” – segundo propõe T. do Prado (Prado, T. M. “O nada como causa em Clarice Lispector”. In Opção lacaniana, São Paulo, Edições Eólia, n. 52, set.2008, p. 59.) –, culminando na experiência da pura dessubjetivação, ruína das identificações e perda das referências em um mundo incompreensível.
“Morta”, era como se dizia quando não escrevia, concebendo sua escrita como o acesso à ausência radical de si mesma: “Escrever é tantas vezes lembrar-me do que nunca existiu[...]. Nunca nasci, nunca vivi: mas eu me lembro, e a lembrança é uma carne viva” (Lispector, C. “Lembrar-se do que nunca existiu”. In A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco,1999, p. 385.).
Pelas passagens duras e estreitas dA paixão segundo G.H., a escritora mostra o horror de
quem só pode encontrar uma identidade para si mesma na vida que por fim não lhe escapa: na barata à qual se reúne.
“Mas que abismo entre a palavra e o que ela tentava...” (Lispector, C. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 67.), exprime quem certamente esteve profunda e terrivelmente advertida de que o “‘eu’ é apenas um dos espasmos instantâneos do mundo”. (Ibid. p. 178.)
*EBP/AMP
NOTA
Conversação do VII ENAPOL
Relatora: Maria Josefina Fuentes
Participantes: Graciela Bessa, Jésus Santiago, Lucila M. Darrigo, Maria Inês Lamy, Teresinha Meirelles do Prado