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A INVENÇÃO DE UM CORPO LACANIANO

 

Marie-Hélène Brousse*

 

 

Fernanda Turbat**:

Freud diz em uma de suas conferências, intitulada Feminilidade1, que o fato de não ter o pênis faz com que a mulher falicise todo o seu corpo. “Na falta do órgão todo o corpo toma seu lugar”. Nesse sentido, Freud propõe que a diferença anatômica tem consequências para a construção do corpo. Você pensa que em algum momento no ensino de Lacan a diferença anatômica traria consequências para a "invenção" do corpo?2

Marie-Helene Brousse

Esta é uma questão difícil. Tenho tendência a responder que não. Para esta resposta me apoio no Seminário 5 e no Seminário 6 de Lacan.

No Seminário 5, As formações do Inconsciente3, Lacan faz a diferença entre pênis, o órgão, e o falo, retomando a questão do penisneid.

 

 

No Seminário 6, O desejo e sua interpretação4, a questão da diferença entre pênis e falo é retomada - o falo como significante do desejo, do desejo do desejo do Outro e etc.

No Seminário 10, A Angústia5, Lacan toma o pênis como órgão, como objeto a. Pênis como objeto a tem um valor fálico, mas de outra maneira.

Se colocarmos todos esses elementos juntos, podemos considerar que para Freud a anatomia é o destino, mas, para Lacan, temos outra impressão: o destino é o significante. O destino é o Outro da linguagem e da palavra, o discurso, que é o que organiza o modo de gozar.

Não temos a impressão de que a partir de Lacan podemos validar a teoria de Freud. Porém, não podemos negar o fato de que o pênis vem frequentemente velar, servir de véu para o falo, isto é, investido de um valor fálico. Isso é incontestável no discurso, ou seja, na civilização, e poucas civilizações colocam este valor do lado do feminino.

Apesar da decalagem com a qual Lacan opera, não podemos negar a experiência infantil e a sexualidade infantil. Não podemos negar que tanto as meninas quanto os meninos têm uma concepção que faz equivaler o pênis ao falo, e que a observação de Freud é válida.

A solução que Lacan utiliza neste momento e que Miller vai retomar em uma das Jornadas Clínicas da Uforca6 é de fazer valer a diferença, a partir não do pênis, mas do falo, entre ter e ser. Para ter, é preciso renunciar a ser, para ser tenho que renunciar a ter. Lacan diz que o neurótico é aquele que quer os dois, ter e ser, e o perverso é aquele que, de fato, se situa como conjunção dos dois.

Esquematizando esta questão de ter e de ser é evidente que não se trata do pênis. Trata-se do pênis investido de uma significação fálica, investido da ordem do significante. Sendo assim, o pênis passa a ter um traço discriminatório de um sistema simbólico, onde há homens e mulheres. Caso não haja um valor discriminatório, o pênis não é nada. É necessário o sistema simbólico para que o pênis, como linguagem, possa entrar em função sob a denominação da discriminação de S1 e S2.

Não acho que o fato de não ter o pênis seja, de forma alguma, um problema para as meninas contemporâneas. Trata-se aqui, nesta perspectiva, acima de tudo, da questão do objeto.

COMPLEXO DE VIRILIDADE FEMININA

Atualmente na sociedade Ocidental, temos no mercado de brinquedos heroínas, bonequinhos para meninas que têm armas, espadas cor de rosa, andam a cavalo. Em outras sociedades, as meninas com véu lutam com armas no jihad. Então, o que chamamos de complexo de virilidade feminina não é mais, de jeito nenhum, um problema. Saímos do século XX; todas as meninas sabem que têm o falo tanto quanto os meninos. Aliás, sempre souberam! Só que hoje o complexo de virilidade feminina é normal, todas as meninas têm um complexo de virilidade e todo mundo acha isso normal. As séries de televisão, por exemplo, Game of Thrones, mostra essa questão muito bem, há heróis homens e heroínas mulheres, as mulheres são tão proprietárias do falo quanto os homens.

LACAN EM ENCORE

Em ...Encore, Seminário 207, a evolução Lacaniana muda. Na tábua de sexuação deste Seminário8, há todos os seres falantes no lado masculino da sexuação, para todo x ϕ de x, e o lado feminino, não concebido como paralelo, complementar ou binário, é concebido não-todo neste registro9. Lacan toma o cuidado de dizer que, aqueles dos seres falantes que quiserem, podem se situar também neste lado (lado feminino) e toma como exemplo um homem, São João da Cruz10, como uma mulher. A tábua da sexuação do Seminário 20, do ponto de vista do modo de gozar, mostra muito bem que a diferença biológica entre masculino e feminino, não é de jeito nenhum o que rege os seres falantes. Lacan aponta que todo mundo está do lado masculino, pois todo mundo fala e alguns, "a mais", estão do outro lado, do lado feminino. O registro do não-todo, do feminino, é muito difícil de situar, e esses "a mais", não quer dizer alternativamente.

 

AS CATEGORIAS DE GÊNERO X MODO DE GOZO

O que Lacan teoriza no Seminário 20, na minha opinião, é o que lhe permite acompanhar a modernidade. A tábua de sexuação deste Seminário possibilita que consigamos nos situar perfeitamente bem com as categorias dominantes de gênero. Na sociedade contemporânea só se fala disso: dizem gender, em inglês, por exemplo, não podemos dizer ser sexuado. As teorias de gênero, que são as teorias de identificação, e unicamente de identificação, não falam de jeito algum do modo de gozo. Dito em um outro vocabulário, em outro tipo de discurso que não o da orientação lacaniana, estas teorias explicitam muito bem o que o lado esquerdo na tábua da sexuação quer dizer. Todo mundo em seu gênero: gay, lésbica, transexual, bissexual, todo mundo do lado esquerdo. A hipótese verdadeiramente lacaniana é a seguinte: há uma pequena parte, não todo mundo, um não-todo, de não todo mundo, com um outro tipo de acesso a um outro modo de gozar.

Fernanda Turbat

Você acha que podemos formular assim: a diferenciação está do lado masculino e a exceção do lado da mulher?

 

Marie-Hélène Brousse

Depende do que você chama diferenciação. Diferenciação simbólica e anatômica são do lado masculino, homem. Homem que também quer dizer ser humano. Alguma coisa, não-toda, de alguns dos sujeitos falantes, não respondem a esses critérios lógicos. Isso é o feminino, no sentido do modo de gozar e não de gênero. O modo de gozo feminino pode ser do lado de um homem, de uma mulher, de um homossexual, etc.

 

SIGNIFICANTE E CORPO: IDENTIFICAÇÃO E ESCOLHA DE OBJETO

Precisamos nos situar nesta questão contemporânea sobre a sexualidade. Há duas coisas: primeiramente a grande diferença freudiana, identificação e escolha de objeto. Não é a mesma coisa! O gênero fala de identificação, implicando essencialmente o significante e as imagens. A escolha de objeto é outra história, implica o gozo, o sexual e o corpo.

A segunda dimensão, a do Simbólico, é justamente um efeito de discurso. Entra em consideração o que digo, a maneira como digo, o sistema simbólico para uma sociedade, etc. São vias que significam como uma sociedade define um homem e uma mulher. Não funciona nunca, mas enfim, não podemos fazer sem isso também!

E a terceira dimensão é a dimensão Real. O que é um homem e uma mulher para o Real? Hoje em dia com a ciência, a única maneira de distinguir um homem e uma mulher, do ponto de vista Real, na minha opinião, é no nível da célula. Quer dizer, os ovócitos no nível do gameta. O Real do sexo é o gameta. Aí sim! 

AS TRÊS DIMENSÕES LACANIANAS

Lacan se serve de três dimensões que permitem nos situar de maneira clara.

Tendo em vista a sexualidade a partir da dimensão do Imaginário que contém a imagem do corpo, entra a indumentária, por exemplo. A dimensão imaginária está presente também no mundo animal, onde é possível dizer: isso é um homem ou uma mulher.

Fernanda Turbat

Aí sim, passando pelo lado biológico?

Marie Hélène Brousse

Absolutamente! Mas não passa pelo corpo, pois como você sabe, agora, não se precisa de corpo inteiro para se reproduzir. Podemos fazer isso no laboratório. Então, os homens e mulheres, biologicamente, não existem mais. O que existe de verdade são células mulheres e células homens. Podemos a partir daí bricolar com isso. Aí há relação sexual, entre o espermatozóide e o ovócito está escrito, há relação. Mas depois, nunca mais! 

Eu considero então, que estes três registros permitem responder ao que Freud considera como anatomia, se a definirmos hoje como biologia, como a ciência da célula e da genética, não é de jeito nenhum o destino, isso é Real! E depois no simbólico e no imaginário há outra realidade, por isso podemos dizer: “fulano é homem”. E se o vemos chorar, dizemos que “homem não chora”. Veja, isso são pedaços de discurso. Mas isto está mudando. Mudando também, de maneira diferente segundo as zonas geográficas.

É bem diferente ser mulher na Síria e ser mulher na França ou no Brasil. Realmente não é a mesma coisa, em termos de vida e de morte.

 

Fernanda Turbat

Obrigada, M-H. Brousse.

 

*AME da Escola da Causa Freudiana (ECF) e da Associação Mundial de Psicanálise AMP). Consultora Científica da Revista Entrevários.

**Associada ao CLIN-a.

 

NOTAS

1 Freud, S. (1933-1932/1996). Feminilidade. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 22.

2 Pergunta elaborada por Cynthia N. de Freitas, Membro da EBP-SP e AMP e associada ao CLIN-a.

3 Lacan, J. (1957-58/1999) O Seminário, livro 5, As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

4 Lacan, J.(1958-59/2013) Le Séminaire, livre 6, Le désir et son intérpretation. Paris: Éditions de la Martinière, Le champ freudien.

5 Lacan, J. (1962-63/2005) O Seminário, livro 10, A Angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

6 Nota da Entrevistadora: Uforca: União pela formação contínua em clínica analítica sob a direção de J.-A. Miller.

7 Lacan, J.(1972-73/1985) O Seminário, livro 20, ...mais ainda. Rio de Janeiro: Zahar.

8 Nota da Entrevistadora: M.-H. Brousse se refere ao quadro de sexuação de Jacques Lacan do Seminário 20 a seguir:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

9 Nota da Entrevistadora:M.-H.Brousse se refere a esta passagem do Seminário 20, p. 93:"Quando escrevo,              esta função inédita onde a negação posta sobre o divisor a ser lido não-todo, quer dizer que, assim que um ser falante se coloca no quadro das mulheres, é a partir disso que ele se funda, de ser não-todo a se colocar na função fálica”.

10 Nota da Entrevistadora: Na revista Cause du désir (2012), n.81, Domenico Consenza no artigo A anorexia no último ensino de Lacan escreve uma nota de rodapé indicando uma leitura sobre o caso deste homem tomado por Lacan como mulher. “Nada impede para Lacan que os homens possam ocupar tal posição feminina de gozo, assim como saint Jean de la Croix, como atesta a pesquisa de Erminia Macola em seu artigo ‘Primo accadere’." La Psicoanalisi, n.50,2011.

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